Carta de Lewis

Sobre o Purgatório

Foi no livro “ORAÇÃO – CARTAS A MALCOLM”, Editora VIDA, 2009, na Carta XX, às páginas 138-139, nos parágrafos 9, 10 e 11, que nosso gênio-mestre escreveu, defendendo o Purgatório em sua melhor explicação, a qual reproduzimos aqui, integralmente, com {chaves} e negritos nossos. Eis a magistral epístola:

ABRE ASPAS

CARTA XX

Preciso muito divagar um pouco para lhe contar uma boa notícia. Na semana passada, quando orava, de repente descobri – ou senti como se o tivesse feito – que perdoara de verdade alguém a quem vinha tentando perdoar havia mais de trinta anos. Tentando e orando para que o conseguisse. Quando aconteceu de fato – repentino como a interrupção do rádio do vizinho –, meu sentimento foi: “Mas é tão fácil. Por que você não fez isso séculos atrás?”. Tantas coisas se realizam com facilidade no momento em que se consegue implementá-las de verdade. Até então, uma completa impossibilidade, como aprender a nadar. Há meses em que nenhum esforço o mantém em cima; até chegar o dia, a hora e o minuto após os quais, e para sempre, passa a ser quase impossível afundar. Pareceu-me também que perdoar (a crueldade daquele homem) e ser perdoado (meu ressentimento) eram exatamente a mesma coisa. “Perdoem, e serão perdoados” soa como uma barganha [Lc 6,37]. Mas talvez seja muito mais que isso. Pelos padrões celestiais, isto é, para a pura inteligência pura, talvez seja uma tautologia – perdoar e ser perdoado seriam dois modos de dizer a mesma coisa. O importante é que uma discórdia se desfez, e com certeza isso foi obra do grande Solucionador de problemas. Por fim, talvez o melhor de tudo, renovei minha fé no que a parábola do juiz injusto nos ensina [Lc 18,1-8]. Nenhum hábito pernicioso está enraizado demais, nem se ora tanto tempo contra ele em vão (como pareceu) para que ele não possa, mesmo na avançada idade do emurchecer, ser varrido para longe.

Imagino se quem morreu há tempos fica sabendo quando nós enfim, após incontáveis malogros, somos bem-sucedidos em perdoá-los. Seria uma pena se não. Um perdão dado mas não recebido seria frustrado. O que me traz a sua questão.

Claro que eu oro pelos mortos. O ato é tão espontâneo, quase inevitável, que só o argumento teológico mais coercivo {de Deus} seria capaz de me dissuadir. E desconheço como o restante das minhas orações sobreviveria se essas, pelos mortos, fossem proibidas. Na nossa idade, a maior parte daqueles a quem mais amamos já morreu. Que tipo de interação com Deus eu poderia ter se aquilo que mais amo não pudesse ser mencionado diante dele?

Na visão protestante tradicional, os mortos estão ou condenados ou salvos. Se condenados, orar por eles é inútil. Se salvos, inútil da mesma forma. Deus já fez tudo por eles, o que mais haveríamos de pedir?

Todavia, não cremos nós que Deus já fez e já está fazendo tudo que pode pelos vivos? O que mais haveríamos de pedir? No entanto, é-nos mandado pedir.

“Sim” alguém responderá, “contudo os vivos ainda estão na estrada. Ulteriores provações, desenvolvimentos, possibilidades de erro aguardam por eles. Os saltos, no entanto, têm sido aperfeiçoados. Terminaram a corrida [I Tm 4,7]. Orar por eles pressupõe que progresso e dificuldade ainda são possíveis. Na verdade você está introduzindo algo como o Purgatório”.

Bem, imagino que esteja. Embora seria de supor até no Céu algum incremento perpétuo de bem-aventurança, alcançado por meio de uma autorrendição cada vez mais extasiada, sem a possibilidade de fracasso, mas talvez não sem os ardores e esforços que lhe são próprios – pois o deleite também coma com suas dificuldades e escaladas íngremes, como bem sabem os amantes. Mas não vou insistir nessa questão nem tentar fazer conjecturas sobre ela por enquanto. Eu acredito no Purgatório.

Lembre-se, os reformadores tiveram bons motivos para lançar dúvidas sobre a “doutrina romana concernente ao Purgatório”, considerando em que se transformara essa doutrina na época. Não me refiro ao simples escândalo comercial {das indulgências}. Se você se desviar do Purgatório de Dante para o século XVI, ficará aterrorizado com a degradação. Em Supplication of Souls [Súplica de almas], de Thomas More, o Purgatório nada mais é que um Inferno temporário. Nele as almas são atormentadas pelos demônios, cuja presença é “mais horrível e penosa para nós do que a própria dor”. Pior ainda, Fisher, em seu sermão sobre o salmo 6, diz que as torturas são tão intensas a ponto de o espírito que as sofre não ser capaz, por causa da dor, “de lembrar de Deus como deveria fazer”. Na verdade, até a etimologia da palavra purgatório já deixou de ser levada em conta. Sua dor não nos traz mais para perto de Deus, mas faz que o esqueçamos. É um lugar não de purificação, mas de puro castigo retributivo.

A visão correta se volta esplendorosamente para The Dream of Gerontius [O sonho de Gerontio], de Newman. Ali, se me lembro bem, a alma salva, ao pé do trono, suplica para ser levada embora e purificada. Não consegue suportar nem mais um instante “as trevas que afrontam aquela luz”. A religião {verdadeira} tem reclamado o Purgatório.

Nossa alma exige o Purgatório, não? Seria de cortar o coração se Deus nos dissesse: “É verdade, meu filho, que você está com o hálito forte e que de seus trapos pingam lama e lodo, mas somos caridosos aqui, e ninguém o repreenderá por essas coisas, nem se apartará de você. Entre no gozo do teu Serihor”, não acha? Nós não deveríamos retrucar: “Com submissão, Senhor, e se não houver nenhuma objeção, eu preferiria ser purificado primeiro”. “Pode machucar, você sabe…”; “Mesmo assim, Senhor”.

Suponho que seja normal o processo de purificação envolver sofrimento. Em parte por tradição; em parte porque a maioria do bem real que me tem sido feito nesta vida o tem envolvido. Mas não entendo que o sofrimento seja o propósito da purgação. Posso bem crer que pessoas nem muito piores nem muito melhores do que eu sofrerão menos ou mais do que eu. “Sem disparates envolvendo mérito”. O tratamento dado será o necessário, quer ele machuque muito, quer pouco.

Minha imagem favorita dessa questão vem da cadeira do dentista. Espero que, quando meu dente da vida for arrancado e eu estiver “me recuperando”, uma Voz diga: “Enxague a boca com isto aqui”. Isto aqui será o Purgatório. O enxague pode durar mais tempo do que sou capaz de imaginar agora. O gosto desse isto aqui pode ser mais adstringente e ardente do que minha atual sensibilidade consegue suportar. Mas More e Fisher não conseguirão me convencer de que será odioso e profano.

Sua própria dificuldade particular – o fato de os mortos não estarem inseridos no tempo – é outra questão.

Como sabe que não estão? Eu com certeza acredito que ser Deus é desfrutar um presente infinito, no qual nada ainda passou e nada ainda está por acontecer. Disso se depreende que podemos dizer o mesmo a respeito de santos e anjos? Ou, pelo menos, exatamente o mesmo? Os mortos talvez experimentem um tempo não tão linear quanto o nosso – que tenha, por assim dizer, espessura, bem como comprimento. Já nesta vida temos alguma espessura sempre que aprendemos a dar atenção a mais de uma coisa de uma só vez. Pode-se supor essa situação ampliada a qualquer medida, de modo que, embora, para eles tanto quanto para nos, o presente esteja sempre se tornando o passado, ainda assim cada presente contenha inimaginavelmente mais do que o nosso.

Tenho a impressão – você consegue resolver o problema para mim e me dizer se é mais que uma impressão? – de que revestir a vida dos mortos benditos de uma atemporalidade rigorosa é incoerente com a ressurreição do corpo.

De novo, como você e eu concordamos, quer oremos em benefício dos vivos, quer dos mortos, as causas que impedirão ou excluirão os acontecimentos pelos quais oramos, na verdade já estão operando. Na verdade, fazem parte de uma série que, suponho eu, remonta à criação do Universo. As causas que fizeram da enfermidade de George uma coisa trivial já estavam em operação enquanto orávamos acerca dela; se fosse o que temíamos, suas causas também teriam estado operando. É por isso, conforme eu sustento, que nossas orações são atendidas ou não na eternidade. A incumbência de promover o encaixe perfeito entre histórias espirituais e físicas do mundo umas nas outras se realiza por completo no próprio ato da criação. Nossas orações, e outros atos livres, nos são conhecidas apenas quando atingimos o momento de fazê-las. Mas elas tem participação eterna na partitura da grande Sinfonia. Não são “predeterminadas”; o prefixo “pré” dá lugar à noção de que a eternidade não passa de um tempo mais antigo. Pois, embora não sejamos capazes de experimentar nossa vida como um presente sem fim, somos eternos aos olhos de Deus; ou seja, em nossa realidade mais profunda. Quando digo que estamos “no tempo”, não quero dizer que estejamos, impossivelmente, fora do presente infinito em que Ele nos observa, como observa tudo o mais. Quero dizer, nossa limitação como criaturas pode ser experimentada por nós só no modo de sucessão.

Na verdade, começamos introduzindo a questão da maneira errada. A questão não é se os mortos fazem parte da realidade atemporal. Eles fazem; o mesmo acontece com o lampejo do raio. A questão é se eles compartilham da percepção divina da atemporalidade.

Diga a George que ficarei encantado. O rendez-vous está marcado para as 7h15 na minha casa. E nós não usamos trajes formais para jantar em noites comuns.

FECHA ASPAS.

 

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