A Construção das Almas e a Lição do Urso

(Baseada no livro “Esta força medonha” e iluminada por João 9,39-41)

Como um animal adquire consciência? Como um gato pode conhecer a própria pessoa distinta dos demais gatos, e assim ir construindo sua alma? Como o mesmo princípio pode ser aplicado a seres humanos? O que houve ao longo da história humana até a consciência que temos hoje e o que haverá com nossa mente no futuro? Eis aqui a história da cegueira geral dos seres.

[ABRE ASPAS]

Fomos concebidos por um ser que é plena Luz e plena Pessoa e do meio dela surgimos, o que nem por isso significa que dentro de nós já houvesse alguma luz ou pessoa. Pelo contrário, a escuridão era nosso coração e nem sequer tínhamos nada a esperar. Ao nosso redor, a morada era surda e muda e, para todos os efeitos, diante de tanta luz, não havia escuridão alguma.

E a Luz pensou sobre nós, e houve luz. No princípio criou Deus o primeiro brilho, daquilo que um dia viria a ser luz. E muito antes de sairmos da mudez e surdez total da ausência de luz, uma pessoa foi pensada e assim veio a existir. A existência, afinal, ou o ser alguma coisa, era a única condição de esperança de um contato com a Luz, e para ela nós é quem estamos distantes de existir e sermos vistos como “coisa”, embora desde cedo chegamos a “pensar” (mesmo que o pensar dos homens ainda não existisse) que nós é quem estamos visível e Deus invisível. Afinal, pouca coisa nos diferia da escuridão total, exceto a imensa Luz de Deus ao redor iluminando tudo.

A criação do pensamento humano também foi outra “novela”, pois de nada adiantaria termos sido feitos coisa e não o sabermos. Mas como levar uma coisa a pensar? Só Deus sabia. Quando idealizou a coisa coruscante, deve ter antes planejado a sua condução à condição de coisa pensante. E muitas coisas já pensantes de hoje em dia ainda perguntam por que Ele teve que conduzir as coisas, ou por que não as fez pensantes de imediato. Isto eu não sei, como coisa pouco pensante que sou. O que sei é que antes do pensamento a visão era muito menor, e isto é que explica a escuridão que havia no princípio, quando Ele diz “haja luz, e houve luz”.

Assim sendo, agora me passo a pensar sobre como era aquela escuridão. O primeiro pensamento é que só era escuridão para quem olhava com olhos de coisa, ou melhor, para quem ainda não pensava. Para todos os outros era apenas luz, ou era toda a Luz gestando coisas que poderiam se tornar luz. A ofuscante Luz exterior parindo pequenas escuridões coruscantes que poderiam se tornar luz pensante. Isto projetava o sonho da criação para bilhões de anos depois de se tornarem luz, bilhões de anos depois de chegarem à personalidade.

Como foram então as incontáveis eras de escuridão (que mais merecem o nome “incuridão”, já que a “excuridão”, aquela que as coisas veriam do lado de fora, jamais existiu), onde as coisas foram atravessadas pela luz e atravessaram as eras?… Não é possível para mim, que já fui cego, surdo e mudo, descrever o que foram as eras de escuridão atravessadas pela luz, até que minha “incuridão” fosse paulatinamente sendo preenchida pelos pequenos brilhos da “excuridão” que incansavelmente me forçavam a renunciar minha obscuridade interior. E assim, na mentira do de repente (Deus nada faz de repente), meus olhos viram a luz exterior. Tempos depois também pude vê-la projetar-se para meu interior e ir, resolutamente, enxotando minha incuridão. Então olhei para mim.

O que foi que eu vi? Como eu ainda não tinha olhos, foi com a intuição de minha incipiente mente animal que vi meu corpo unicelular se multiplicar até me tornar um multicelular aquático e assim viver por milhões de anos em espécie. Depois disso migrei para a terra, não sem antes curtir a incipiente vida de girino mergulhado entre os anfíbios pantaneiros. Finalmente assumi-me telúrico e subi o barranco, a colina e a montanha. Desci à floresta tropical; mas ninguém pense que havia trópicos ou que tudo isso foi rápido. Demorou tanto que quando voltei a olhar para mim (ainda não era um pensamento personalizado), minha intuição animal me disse que eu tinha patas, patas fortes e reforçadas com garras e unhas. Estou dizendo que eu agora era um urso, mas jamais eu soube disso antes de completar uns mil anos da espécie “horribilis”.

Soube então que a Luz (eu ainda não podia entender que era Deus – e um Deus pessoal) continuava a guiar-me, conduzindo-me como sempre fez, desde que pensou em me “inventar”. E então minha espécie veio a conviver com a “homo”, muito antes de ser “habilis”. Esta convivência, quase sempre negativa pela violência de parte a parte, conduziu-se até a transformação do HABILIS EM SAPIENS E DO HORRIBILIS EM CIRCENSIS. Chegara a era em que o HOMO-SAPIENS-SAPIENS levava seus filhotes ao circo para ver minha espécie domesticada fazer palhaçadas para alegrar macacos imberbes.

Até que um dia um macaco imberbe começou a me bater tanto que uns macacos fardados vieram ao circo e me tiraram das mãos dele, e me levaram para uma casa de adoção de animais. E eu tive sorte, pois “um tal de Fisher King” decidiu pagar caro por minha adoção e me levou para sua casa no Monte de Santana. Não pense que eu soube de tudo isso durante minha travessia das eras. Nada disso. Só estou a contar essas coisas porque todas as minhas “incuridões” de coisa já haviam sido banidas pelas brechas que eu milagrosamente abri para a sublime Luz da “excuridão”.

Ao chegar na enorme casa do Dr. Fisher, ele me deixou à vontade para comer todo o mel que eu achasse, e até as abelhas, se quisesse. Creio que foi assim que ele passou a me estudar, e eu a ele, se é que estudar significa alguma coisa agora (na época nada significava para mim). Acho que minha personalidade emergiu menos opaca porque o Dr. Fisher falava sempre comigo como se eu fosse outro homem, um “ursu-habilis”. Mas neste exato instante, embora eu já esteja enxergando alguma luz em minha incuridão, não sei como descrever meu coração para ninguém, nem mesmo para outro urso, e por isso só posso pedir que, se você quiser conhecer como é meu interior e como foi o processo de visualização da pequena fresta de luz que hoje me permite pensar (e pensar que vou ser ressuscitado com Cristo), procure ler o livro “Aquela Força Medonha”, de CS Lewis, e ficará sabendo de tudo. CS Lewis descreve todo o meu interior no final do livro.

Mas uma cousa posso lhe dizer: o que aconteceu comigo é idêntico ao que acontece com todos os ursos e com todos os seres ditos “humanos”, no intuito divino de levar todos à perfeição. Ou seja, todos vêm do pó infinitesimal das estrelas e seguem crescendo, crescendo, até o unicelular, o multicelular, o girino, o anfíbio, o rato, o sagüi, o primata e o homo. Porém tudo às cegas, por bilhões de anos, até que a incuridão seja finalmente vencida pela Luz, após esta ter “quebrado” a excuridão da rebeldia. Este é o ponto. Falando assim, até pareço gente. [FECHA ASPAS].

 

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