A falta de uma certa cura suscita reflexões sem fim

As Escrituras jamais mencionaram o encontro de Jesus com uma pessoa sem braços e sem pernas, ou com uma criança anencéfala. Por que Deus não deu a Cristo tal oportunidade?

Nick Vujicic-1

“A vida se equilibra nos contrastes”, já dizia o mestre Costa Matos. A vida humana é fruto das oportunidades que o destino lhe enseja, e isto é decisivo na avaliação do “rendimento” ou performance da criatura sobre a face da terra, explicava CS Lewis. Todavia, o que extrair da experiência de Cristo na carne, em relação às oportunidades que Ele teve ou não teve?

Ora; o mundo é incrédulo, desde a Queda de Adão e Eva, e Deus sempre soube disso. Também viu que para seu Filho Jesus conseguir um mínimo de adesão das criaturas perdidas, seria necessário a operação de milagres sobre-humanos – aqueles que mago algum consegue fazer – para autenticar a divindade do Nazareno, certamente como única e tosca ferramenta de suscitar a confiança necessária para seu seguimento, dando autoridade às suas revelações.

Porquanto nenhum milagre seria necessário num outro planeta que fosse mais sensível à crença, e esta ali surgiria natural ou automaticamente após a audição das pregações de Jesus nas praças públicas (afinal a salvação vem pelo ouvir, e pelo ouvir da Palavra de Cristo). Logo, é lógico supor que os milagres foram um acessório útil aos perdidos no labirinto da descrença, e não aos bem-aventurados da fé, como um João Batista, um João Evangelista, um Abraão, um Noé, um centurião romano, um Estêvão e alguns outros raros exemplos dignos de Hebreus 11.

Fariseus falam a JesusIsto levanta um terrível problema. A saber: se os milagres não eram teoricamente necessários, então muitos deles não entrariam na lista de operações de Jesus. E não entrariam por uma ou várias das seguintes razões: (1a) Jesus se esqueceu de alguns; (2a) Jesus nunca teve oportunidade de encontrar ocasião para operá-los, e nem podia forçar tal ocasião; (3a) A onipotência completa não foi dada a Jesus antes de sua ressurreição, e assim Ele não tinha poder para operar TODOS os tipos de milagres – a ubiquidade é um bom exemplo; (4a) Deus achou melhor não dar a Jesus ensejo para falhar num milagre, como Ele chegou a falhar no início de uma cura (Marcos 8,22-25); (5a) Jesus não podia operar milagres que ultrapassassem os limites do plausível para um ser humano operar; (6a) Toda a arquitetura da salvação estava posta para operar através da mecânica “fé x obras”, e estas duas só seriam legítimas pela obra interior e exterior do arrependimento, que envolve coisas como o perdão ao próximo, o ouvir bem a pregação cristã – o apelo de Deus – e a crença “infantil” (aquela que é capaz de acreditar que Jesus poderia transformar-se em pão na mesa dos cristãos). Ora, tudo isso poderia prescindir do milagre se o ouvinte acreditasse com todo vigor na pregação e logo se arrependesse de seus pecados, passando a praticar o bem: isso seria suficiente para salvá-lo.

Ora; se então a salvação dependeria exclusivamente de algo espiritual – a fé – e prático (a caridade do crente perfeitamente arrependido), logo, milagres não seriam nem são necessários, em absoluto, e isto explica porque Jesus não operou outros prodígios, alguns muito mais eloquentes – do que os que Ele operou – para autenticar a crença! Vejamos exemplos de milagres muito mais portentosos e não realizados por Jesus:

1. Jesus jamais “construiu” ou ‘criou’ braços e pernas em alguém que tivesse nascido sem os tais; detalhe: um milagre desses seria impossível a qualquer mago comum e a Medicina, embora já dominando a tecnologia das células-tronco e da clonagem, ainda não conseguiu “criar” braços e pernas de carne e osso; logo, se Jesus tivesse operado tal coisa, muito mais gente creria nEle. [Não adianta dizer que esta cura ficou subentendida em João 21,25 porque ela seria tão espalhafatosa e mirabolante que os evangelistas jamais a omitiriam, se ela tivesse de fato ocorrido].

Anencefala real (512 x 288)2. Jesus jamais “construiu” ou ‘criou’ um cérebro numa criança anencéfala, i.e., que nasceu sem cérebro; este também é um milagre além da Magia comum e além da Medicina. [Filosoficamente, nem sabemos como seria a reação de Jesus em tal encontro, ou se uma criança anencéfala tem alma, já que esta está vinculada aos pulsos da rede neuronal de um cérebro humano; se não houver alma ali, a pergunta é: Jesus criaria na hora uma alma nova ou deixaria no céu aquela que não veio? – Enfim, são questões mirabolantes para os teólogos “suarem a camisa”].

3. Jesus também jamais ressuscitou alguém que já tivesse aparecido como fantasma. Ou seja: os ressuscitados dEle – como Lázaro – pareciam estar apenas no túmulo ou na região dos mortos, sem qualquer contato com o mundo dos vivos. Este milagre também é impossível à Magia comum e à Medicina, pelo menos pelos próximos 500 anos.

Enfim, a reflexão vai longe. Voltemos à pergunta: por que Deus não oportunizou a Jesus operar tais coisas?

Porque quando Deus se encarnou neste planeta, Ele também abandonou a sua onipotência e passou a ser um ser local, limitado aos parâmetros tridimensionais da matéria densa, e isto elimina qualquer chance de ir muito longe. Senão vejamos:

medico1o – Deus não podia curar doentes noutro país, e nem mesmo muitos doentes de sua própria terra natal. Mesmo que houvesse avião na época, Ele não teria tempo de vida suficiente para curar tanta gente, nem poderia usar da ubiquidade para fazer isso. Isto explica porque o amor ao próximo é o maior mandamento, e não o amor “ao longe” (lembrar aqui que num certo sentido TODA a Humanidade está doente, e que a cura total só se daria com a ressurreição em corpo glorioso).

2o – Ele escolheu Israel como nação-teste e povo-exemplo, não apenas para que o mundo todo visse que Ele foi rejeitado até por aqueles que Ele mesmo elegeu, como para mostrar, no sofrimento de um povo rebelde, qual é a santa, agradável e perfeita vontade de Deus (que se traduz por Moralidade cristã).

3o – Só um Deus-local poderia servir de modelo para um homem que quisesse ser algo além da mera matéria densa, mostrando que se um outro homem alcançou o favor de Deus, qualquer outro poderia também encontrar a mesma glória (aqui é o milagre da ressurreição o grande trunfo, e único que não poderia faltar na agenda de Jesus).

4o – Ao limitar a sua onipotência em Jesus, e ao assumir a humanidade como parte de sua nova natureza, Deus nada fez que não estivesse previamente planejado na limitação de sua onipotência pela criação-outorga do Livre-arbítrio às suas criaturas, e assim Ele deixou de ter poder salvador completo, já que a salvação depende mais da vontade humana que da divina, por assim dizer. Logo, toda a alegada soberania de Deus se esvai com um simples NÃO humano, restando a Deus apenas chorar a alma perdida.

Finalmente, todo o arrazoado aqui presente não seria possível sem a contribuição decisiva da teologia lewisiana em nosso meio, pois somente CS Lewis chegou a vasculhar esses lugares tão misteriosos da criação e da mente de Cristo, por possuí-la em si. Chegamos a pensar que assim como Israel foi escolhida como nação santa e povo eleito, seriam “privilegiados” os filhos (alunos) espirituais de Lewis, os quais teriam acesso a revelações abarcantes dos temas da Palavra de Deus omitidos involuntariamente por esta (João 21,25). Pena que as igrejas, enquanto pessoas jurídicas, jamais se toquem para a realidade revelada por Lewis e o mantenham apenas como mais um autor no panteão das livrarias evangélicas, sem qualquer diferença decisiva em sua fé e doutrina. Resta o consolo para nós outros, implícito na frase de Jesus: “porque a vós outros foi dado conhecer os mistérios, mas aos outros não” (Mateus 13,11).

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