A importância vital da humilhação

A exemplo da vida dos grandes mártires, toda a cristandade deveria encarar com alegria as bênçãos advindas do fato de alguém ser julgado digno de sofrer por Jesus, submetendo-se a um destino que Ele mesmo enfrentou

Um impressionante trecho de uma carta paulina nos diz, em poucas palavras, o que deveria ser a grande lição para cada ser humano neste planeta, a exemplo do que ocorreu com o próprio Jesus, único a quem a regra se aplica sem merecimento algum de qualquer situação de dor ou “vexação”. Paulo escreveu, na epístola aos Filipenses, capítulo 3, versículos 20-21, a seguinte sentença:

“Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas”. O trecho terrível aqui comentado será “o qual transformará o nosso corpo de humilhação”. Procure o leitor deixar vivo na mente a noção de “corpo de humilhação” para facilitar o entendimento claro deste artigo.

Com efeito, nada pode ser mais arrasante e quebrador de presunção do que saber que só uma autêntica humilhação poderá fazer bem o trabalho de Deus em nós, e que só a humilhação pode ser o antídoto perfeito para a soberba humana. Eis porque Paulo escreveu usando a expressão “corpo de humilhação”, ou indicando que nossa carne está posta justamente para sofrer todos os mecanismos de “rebaixamento” necessários à quebra do orgulho humano, a vaidade das vaidades de que falava o sábio Salomão.

Assim pois é que a longa e dolorosa história do sofrimento humano ganha um novo sentido, já que nada, absolutamente NADA, tem força suficiente para deixar o ego humano no seu devido lugar, ou no patamar do qual nunca deveria ter saído, a saber, um degrau abaixo do menor querubim e um degrau acima do maior macaco. O sentimento puro do seu lugar na criação, que os animais terrestres (melhor exemplo seriam os narnianos) tão bem ocupam na cadeia bio-hierárquica, foi golpeado de morte na desastrosa decisão de viver sem o comando de Deus, no que ficou conhecido como a Queda do Homem, que apenas caiu no conceito de Deus mas cresceu a seus próprios olhos, julgando-se então senhor da criação, com autoridade para governar a si mesmo sem qualquer participação divina.

O orgulho nasceu ali. E cresceu e virou soberba, cuja origem estava naquele que lhe levou a cair, bilhões de anos antes, na queda dos anjos. E foi crescendo, crescendo, até tomar todos os espaços do coração humano, tornando-o o lado mais negro e perigoso da alma, e fonte de todos os pecados da Humanidade (Mateus 15,18-19).

Como recuperar então a alma humana, por quem Cristo morreu? Como chegar a ser alguém para quem essa alma desse a atenção devida ao amor verdadeiro? (Aliás, a desatenção da alma para com Deus chegou a tal ponto que mal notou os sofrimentos de Cristo, mesmo após assistir a um filme como “Paixão de Cristo”, dirigido por Mel Gibson). Parece que só há ou só havia uma resposta a esta pergunta, e Lewis foi quem nos deu a honra de conhecê-la, explicando que em última análise, o mal só se enxerga como mal quando se torna vitimado por ele mesmo. Eis porque o mal não foi abolido do mundo, ou seja, por causa de seu caráter pedagógico.

É claro que os “bons” gritarão agora e dirão: mas por que então o mal não atinge só aos maus? A única resposta é: “e quem é o bom?” (Rm 3,10-12)… Ou quem, no exclusivo conceito de Deus, pode ser chamado de bom ou justo, quando mal conseguimos refrear nossa ira quando somos ofendidos ou agredidos? Se ser bom é ser igual a Jesus, quem pode se dizer igual a Ele? Quem será cuspido e não cuspirá? Quem será esmurrado e não esmurrará? Quem terá sua mãe xingada e não xingará a mãe do xingador?… Assim, é aqui que o parafuso estrompa a porca.

Porquanto não é possível retornar ao estado de pureza original de Adão e Eva sem uma lavagem completa da alma, cuja imundície alcançou todos os poros e entranhas, a ponto de nenhuma mente humana ser capaz de identificar (se não nos outros, muito menos em si) onde está o pecado, e por isso teima em se ver “boa”, ou merecedora de melhores atenções de Deus. Logo, é necessário mais alguma coisa, além do sacrifício vicário de Jesus na cruz: é necessário a irrestrita adesão do homem às fórmulas salvadoras das Escrituras Sagradas, que indicam quais devem ser os comportamentos do homem para limpar-se a si mesmo, seguindo voluntariamente as exigências morais da Palavra de Deus (ou seja, imitando Jesus Cristo).

É claro que o homem não pode limpar-se, completamente, naquilo que Deus entende por perfeição (Mt 5,48). Ele pode limpar-se até onde alcança a sua visão humana, e somente quando tiver fé e força de vontade suficiente para vencer as tentações. Neste caso, só com a ajuda do próprio Deus, por seu Espírito Santo, o homem pode melhorar – apenas melhorar – no conceito divino, pois a perfeição jamais será alcançada na Terra (Fp 3,12-14).

Com efeito, quais processos de limpeza Deus pode usar para ajudar o homem a limpar-se? É aqui que entra a humilhação. Ora. Se o maior pecado é a blasfêmia da soberba de se julgar igual a Deus, o que poderia quebrar tamanho orgulho no coração surdo dos filhos de Adão? Somente um processo semelhante ao que experimentou Cristo (este sem jamais merecê-lo). É preciso então o Homem sofrer, ou enfrentar o sofrimento com resignação e alegria – por incrível que pareça –, feito um verdadeiro louco, que ri da própria desgraça e sabe o bem que ela está fazendo à sua alma. Não é à toa que os povos mais sofridos do mundo (como os filipinos, os africanos e os hindus) são também os mais espiritualizados, embora não necessariamente cristãos, no processo de martelamento do espírito que levou os judeus do Velho Testamento a alcançarem o posto de “povo eleito”. Não é à toa que não haverá nenhum mártir no inferno, pois seu sofrimento já lhes operou a limpeza necessária.

Não estou aqui dizendo que a fé em Cristo não é necessária. Estou dizendo que Deus chamará dos mais diversos povos e pelos mais diversos mecanismos, todos aqueles cuja humildade já alcançou o ponto de auto-anulação voluntária, na resignação sem revolta daqueles que souberam das dores de Jesus e se espantaram de não as sofrer também. É aquilo que o Novo Testamento chama de “a alegria de ser julgado digno de sofrer por Jesus”. Porém não sei e ninguém pode saber QUAIS critérios de avaliação Deus usa para determinar quais almas precisarão quais dores; e, assim como Ele uma vez deu mais a quem tinha mais e deu menos a quem tinha menos (cada um precisava de uma medida que só o Pai conhecia: Lc 19,26), é possível que haja almas que sofram menos que outras e vice-versa, e podemos estar certos de que o maior sofrimento de uma foi o tanto exato para recuperá-la, assim como o menor sofrimento da outra foi o ideal para restaurá-la (I Co 10,13). Porém, uma coisa é certa: ninguém será poupado do sofrimento, pois nem sequer os anjos e nem seu único Filho Deus poupou (2 Pe 2,4 e Rm 8,32).

Logo, é-nos forçoso reconhecer a importância vital da humilhação, pois somente uma alma humilde pode olhar para cima e enxergar a imensidão de Deus, pois as almas orgulhosas estão sempre olhando de cima para baixo, vendo as outras pessoas sempre piores do que elas. Assim sendo, se para fazer uma alma olhar para o alto com humildade for necessário toda a humilhação de Cristo, ninguém deve duvidar de que ela experimentará momentos de extrema humilhação, que talvez nenhum de nós saiba dizer a que isto se refere. Pode ser apenas a dor física (que também humilha bastante), pode ser uma traição conjugal, pode ser uma demissão num momento em que as finanças iam bem, pode ser uma rejeição amorosa, um lar desfeito, uma orfandade repentina, um acidente incapacitante, um filho predileto que cai nas drogas, enfim, até um exame tátil proctológico num sujeito que passou a vida inteira dizendo que jamais mostraria o ânus para outro homem. São inúmeros os meios que Deus tem para executar em nós a cirurgia absolutamente benéfica da humilhação, que o próprio Deus experimentou em Cristo.

Resta-nos um consolo: se Ele que não tem pecado algum teve que passar por tamanha “vergonha” (lembre que ser morto numa cruz era exatamente isso no tempo de Jesus), por que cargas d’água nós teríamos uma “dignidade tão intocável” que não mereceríamos um momento desses, em que todo o nosso orgulho cairia diante de uma “risada do Além”? Ora, nós passamos a vida inteira rindo dos outros (o Bullying está em toda parte) e agora chegou a nossa vez de provar se somos mesmo melhor que eles ou não. Engula sua presunção e ficará limpo.

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