A cristandade inteira sabe que Jesus pediu para perdoarmos todos os nossos inimigos e até “fecharmos os olhos” para os ciscos nos olhos alheios, já que teríamos uma trave no nosso. Entretanto, num trecho duríssimo, João se mostra 100% intolerante para com o próximo, mas igreja alguma fala deste assunto.
É fato consumado entre os cristãos que os seguidores de Jesus devem nutrir a tolerância e a compreensão para com os outros, sobretudo quando se trata de almas enganadas por outras religiões e assim até certo ponto “inocentes” no engano das falsas doutrinas. Cristo mostrou-se perdoador de todos os pecados e o Novo Testamento registra apenas um momento em que Ele explodiu de raiva, partindo para a “agressão física” aos pecadores desonrantes da Casa de Deus, no conhecido “episódio dos açoites no Templo”.
Além daquela ocasião difícil para Jesus, os registros apontam no máximo para momentos de ira verbal, como no caso do “sermão antifarisaico”, encontrado em Mateus 23. Outrossim, aquilo que chamam de “pecado imperdoável” (Lucas 12,10) nada mais era que a livre vontade de continuar uma vida independente dEle, rejeitando a Sua Santa vontade [os protestantes chamam isso de “a simples descrença em Jesus”]. Afora isso, tudo o mais deveria ser relevado (“dado por menos”) e a aproximação, mediante sincero arrependimento, deveria incluir e ser aceita por todos, indistintamente.
CS Lewis foi ainda mais longe (no sétimo livro das suas “Crônicas de Nárnia”, chamado “A última Batalha”), mostrando que nem mesmo a tal “blasfêmia contra o Espírito Santo”, embora nunca mencionada naquele livro, seria computada por Deus como um item numa lista de acusações, pondo em dúvida até a existência de uma lista dessas. Eu também não creio numa lista de pecados, e sigo com Lewis entendendo que nada nos separará do Amor de Jesus, exceto a nossa livre vontade de não segui-LO, num direito outorgado pelo próprio Deus. No último dia, então, como mostrou Lewis, o próprio Senhor do Universo estará “impotente” diante de nossa última decisão, saindo frustrado da nossa frente para chorar baixinho num canto do Paraíso que recusamos. Este é o retrato fiel do Plano de Deus e das chamadas “últimas coisas”, que a EAT adota como centro de sua Soteriologia.
Assim sendo e isto posto, como entender o que João Evangelista disse em II João 7-11? [7 – De fato, muitos enganadores têm saído pelo mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Tal é o enganador e o anticristo. 8 – Tenham cuidado, para que vocês não destruam o fruto do nosso trabalho, antes sejam recompensados plenamente. 9 – Todo aquele que não permanece no ensino de Cristo, mas vai além dele, não tem Deus; quem permanece no ensino tem o Pai e também o Filho. 10 – Se alguém chegar até vocês e não trouxer esta doutrina, não o recebam em casa nem o saúdem. 11 – Pois quem o saúda torna-se cúmplice de suas obras malignas]. Como pôr em prática um comportamento que trata tão intolerantemente um irmão de outra religião, como se ele tivesse cometido uma blasfêmia contra o Espírito Santo? (Mesmo se fosse blasfêmia, como não levar em conta a ignorância de quem foi ludibriado por uma religião falsa, lembrando o que Lewis revelou no final das Crônicas de Nárnia e também o pedido pungente de Jesus na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem”?)… – A questão, como vemos, é complicada. É disso que tentaremos tratar aqui, com a devida atenção do leitor.
Duas vertentes teológicas se formam no trecho da segunda carta de João. Provavelmente, ambas são válidas, dependendo da ótica denominacional adotada e do contexto em que o assunto é tratado. Afinal, a Palavra de Deus está acostumada a nos apresentar aparentes contradições e nós também já deveríamos estar acostumados com elas, dada a enorme diferença entre o pensamento de Deus e o nosso, como explicaram Isaías (Is 55,8) e Lewis, em seu excelente “Transposição” [Na transposição que Deus foi obrigado a operar para se tornar inteligível à mente humana, muitas verdades ficaram prejudicadas pela ambiguidade ou pobreza da linguagem e da mente humana, gerando as tais contradições involuntárias da Revelação]. Ou seja, trocando tudo isso em miúdos: (1) os cristãos devem mesmo perdoar a todos indistintamente e independente de qual pecado tenha sido praticado contra nós; e (2) os cristãos devem mesmo evitar e até expulsar da sua convivência um indivíduo blasfemo que tenta nos enrolar com falsas doutrinas. Vamos analisar estes dois pontos.
(1) As pessoas sinceramente enganadas pelos falsos pastores provavelmente não têm maldade suficiente para nos prejudicar a fé, sobretudo de estivermos treinando, aperfeiçoando ou exercitando a nossa espiritualidade (“Que mal me pode fazer o homem?” – Sl 56,11). Muitas delas vêm a nós carregadas das mais boas intenções, acreditando estarem cumprindo a Grande Comissão de levar a boa nova aos 4 cantos do mundo, e por isso merecem todo o nosso respeito e carinho. Elas estão, a rigor, fazendo exatamente o que nós temos feito ou o que deveríamos estar fazendo, se de fato encontrássemos alguém que precisasse de uma pregação mais do que nós. Elas, portanto, não devem ser alijadas, afastadas ou desconvidadas de nossa casa, cuja maior razão de ser é justamente constituir um lar cristão, cópia e projeto de uma futura igreja. Sua boa intenção de nos evangelizar deve ser contrabalançada com a nossa pregação mais instruída, em comum acordo, de tal modo que haja sempre uma boa conversa meio a meio, na qual o lado cristão seja vencedor, pela força da nossa eleição em Cristo. Perdão de parte a parte sempre complementará aquelas conversas benfazejas.
(2) As pessoas secretamente malintencionadas que nos visitam para pregar suas crenças devem ser frontalmente combatidas com a profundidade e mansidão do Evangelho, por duas ou três ocasiões sequenciais, desde que demonstrando interesse em aprender algo novo e de fato dando sinais de certo amolecimento do coração de pedra, com o que uma futura conversão possa ser aguardada. No caso dessas condições não estarem sendo satisfeitas, então é a ocasião apropriada e virtuosa em que ao cristão é dada a permissão para afastar-se de tal pessoa, chegando até à prática de uma expulsão real, se a insistência se mostrar arredia e hostil e à nossa pregação cristã não esteja correspondendo nenhum sinal de mínima adesão ou interesse. Eis aqui o caso factual citado por São João, e todos os líderes de seitas, ou de religiões não-cristãs, ou de interpretações recém-criadas, devem ser alvo de nossa intolerância sumária, na qual até a visível estampa de inimizade pode ser exposta em nosso rosto perante o intruso, pois o mesmo já tinha de há muito o plano de nos desviar de nossa sã doutrina.
Eis aí o quadro-resumo da situação exposta por João e complementada pelo contexto evangelístico do Novo Testamento. Os cristãos podem e devem, portanto, incluir em sua agenda missionária uma ocasião onde uma prática aparentemente intolerante tenha lugar, justamente para dar ao mundo uma noção precisa de onde estão os muros invisíveis que ladeiam o único Caminho da Salvação, facilitando a pronta identificação da igreja de Cristo às almas perdidas.
O que deveria nos estranhar é justamente a ausência da intolerância (por incrível que pareça) no mundo pós-moderno, o qual assumiu, por influência malévola da mídia, uma postura pusilânime e permissiva, onde não faltam a bajulação e a assimilação/degustação de todas as liberdades individuais, inclusive quando estas descambam para a libertinagem. E se é estranho que o mundo inteiro tenha se tornado esta sopa pegajosa de aprovação de tudo, muito mais estranho é perceber que a igreja pós-moderna também faz vista grossa para tudo (obviamente numa estratégia proselitista), como se o fato de ela estar abarrotada de gente constituísse algum critério de valor para a santificação das almas, para a aprovação da parte de Deus ou para o aplauso dos anjos!: Isto é o mais ledo engano, que só logrou êxito por causa do Capitalismo selvagem de nosso tempo, no qual o Criador do Universo foi substituído pelo deus-dinheiro – deus este que também está nas igrejas.
Resta-nos ainda, talvez, num esforço moribundo como única alternativa verdadeiramente cristã, a opção de lutarmos como o pássaro que estava à beira do lago, sozinho a encher o papo de água, na intenção de apagar um incêndio. É duro saber que o que nos falta hoje em dia é justamente este senso de comunidade fraterna, solidária, unida no encalço de um só ideal, a saber, agradar ao nosso Deus, custe o que nos custar, doa em quem doer.
2 respostas a A intolerância aprovada e autorizada pela Bíblia