A natureza indefinível e imprevisível da relação de intimidade entre Deus e o homem põe em evidência a impossibilidade de determinação de uma liturgia geral para normatização doutrinal
Diga-se o que se quiser dizer, reflita-se o que vier à cabeça, proponha-se qualquer fórmula para a mecânica da conversão e nada adiantará no final das contas, ou nenhuma diretriz segura pode garantir que esta ou aquela fórmula é exata ou única para explicar o “religare” que criou todas as religiões. E ainda, a relevância deste tema transcende a tudo o mais em matéria de teologia e espiritualidade, e, pior, tem sido até certo ponto relegada ao limbo, ou a uma insignificância inadmissível no meio cristão.
Dada a dificuldade intrínseca da área lingüística onde este tema se encontra (a saber, as coisas do espírito, para as quais a linguagem humana jamais foi criada), a própria exposição do objeto aqui tratado é problemática, e não serão todos os leitores a entender sequer o que de fato estamos tratando. O objeto referido é o foco central de todas as religiões bem intencionadas, embora acreditemos que até as religiões malévolas tenham, um dia no seu nascedouro, vislumbrado a busca pela paz com Deus ou o reencontro com a felicidade perdida, mola-mestra de tudo o que existe no mundo em matéria de sobrenatural e transcendência.
Só que aqui neste arrazoado estaremos tratando apenas da parte íntima (ou mais interior) da busca humana pela divindade, adicionando a ela o fator cristão indispensável da busca que a divindade empreende pelo homem. E é aqui e só aqui então que a questão se agudece e se intrica, porquanto flutua e invade um terreno existente (por enquanto) apenas ao nível “aparentemente” abstrato dos pensamentos e sentimentos humanos, para o qual nenhuma linguagem de palavra possui qualquer préstimo; e assim, já que não há como falar telepaticamente com o leitor (até porque a telepatia humana também usa palavras), o mais provável é que ao final deste discurso ninguém saia entendendo muita coisa, sendo honesto admitir que esta leitura poderá ser vista como uma ingrata perda de tempo.
Mas mesmo assim, prossigamos. O leitor já foi avisado, e por muita gente boa…
Estive pensando muito no assunto nos últimos anos e estou particularmente enredado com ele nestas últimas semanas, devido à frustrante constatação de que não adianta procurar a mente mais brilhante, o gênio, mesmo no meio cristão, se a intenção for levar-lhe o tema da “revelação íntima” entre Deus e a alma humana. Ou seja, não há, humanamente falando, nada que se possa fazer para passar (transmitir) a experiência íntima que uma alma tem com Deus; e como só podemos falar de nossa própria intimidade, não há como falar de nós mesmos, exceto se não tentarmos expor aquilo que Deus está fazendo em nós, ou o que Ele tem comunicado a nós. [Creio que era isso que Shakespeare quis dizer quando falava da impossibilidade de transmissão da experiência individual, que o leitor poderá ver pessoalmente digitando no Google a frase “O Pentagrama Shakespeareano”].
Até porque, a rigor (para bom entendedor), não é uma coisa muito louvável ficar expondo as partes louváveis de nossa alma (quem expõe as podres? E para quê expor?), as quais devem eticamente permanecer ocultas até que Deus instaure um Juízo Final e Ele próprio veja a conveniência de tal informação. Pelo contrário, no Cristianismo mais elevado de CS Lewis, o que é mais certo é que Deus jamais faria tal coisa. As partes podres só poderiam sair por nossa boca se estivessem num contexto que, sendo (pré)visível uma conversão genuína, ajudassem um outro pecador a vencer seu pecado pelo exemplo dado. Enfim, aqui está o silêncio mais sábio exigido da alma humana.
Todavia quebrando a regra lógica imposta como exigência para formação do bom caráter, na relação íntima com Deus aparecem coisas – “coisas” aqui é temerariamente inadequado – que poderiam, sem dúvida, pôr em cheque muitas das tradições litúrgicas e devocionais das instituições religiosas (aqui estamos tratando apenas do Cristianismo), tanto em relação às formas de adoração quanto à normatização de doutrinas. Então, de imediato, nos adiantamos para perguntar até que ponto uma subjetividade incomprovável poderia, à luz de qualquer lógica, servir de instrumento para balizar esforços coletivos, ou se não será o óbvio supor que é o indivíduo, afinal, quem deve ajustar-se ao coletivo objetivo adotado como “oficial” (??).
Isto é: como poderia uma relação íntima servir de base para uma relação pública, quando uma unidade comporta a insegurança e a dúvida de acerto para as demais almas? Ou QUEM teria tanta espiritualidade e santificação que pudesse servir de “modelo” de relação com Deus para instruir todas as outras almas em contato com a divindade?
Voltamos então ao tema da descrença, e aqui, da lógica da descrença. Porquanto nenhuma descrença parece mais lógica do que aquela que oferece um mínimo de segurança à alma humana, num mundo onde ninguém, nem mesmo o mais santo dos santos, tem dado sinal de merecer qualquer lugar especial na galeria de exemplos de santidade. Entretanto, para o assunto alcançar o mínimo de utilidade nesta ocasião, vamos deixar de lado toda a questão da revelação íntima da santidade, da ética e da práxis devocional, atendo-nos tão somente à possibilidade de revelação “intelectual” de Deus para balizar e interpretar melhor as Escrituras Sagradas.
Com efeito, perguntemos: “e se o Senhor por acaso contar alguma coisa especial aos ouvidos de uma alma, com a qual certas partes da doutrina fiquem mais bem visualizadas e possam conduzir a uma melhor visão global do Reino de Deus? Ou, e se uma palavra da telepatia íntima entre a alma e seu Senhor trouxerem uma explicação definitiva para um ponto da doutrina com o qual a Cristandade tem se dividido ao longo dos séculos?” (Neste caso há, pelo menos, uma causa nobre a validá-la, a saber, a paz entre cristãos)… – E então? Deve-se prosseguir e contar em voz alta?
A dúvida aqui é a mesma do ato em si, se a nós chegasse via terceiros. Teríamos, pelo menos, que ouvir bem e atentamente, esperando encontrar raciocínio lógico suficiente para quebrar os duros paradigmas da descrença, quando ela ocorre no coração de crentes. A pergunta seguinte é: o senhor encontrou alguém – no meio cristão – que tenha feito isso? Sim. Encontrei, porém lamento informar que o método utilizado por ele para passar ao público a sua revelação íntima foi de tal modo covarde (temeroso e até omisso) que acabou por gerar frustração, apesar da irrefutável lógica que o norteou.
Ou seja, o indivíduo que decidiu revelar as telepatias íntimas de Deus para ele, embora o tenha feito com lógica imbatível, jamais chegou a sugerir que aquela deveria ser a visão “correcional” da Revelação pública oficial; pelo contrário, chegou mesmo a esquivar-se e dizer que não estava trazendo nada que quisesse se colocar como “opção” aos credos existentes, aconselhando até mesmo ao leitor que se estivesse se sentindo bem com seu credo atual, “pulasse” aquele capítulo ou nem chegasse a lê-lo (para quem conhece, é óbvio que estou me referindo a CS Lewis).
Finalmente, aqui está portanto a prova que precisávamos: o maior cristão de todos os tempos, tendo recebido de Deus revelações íntimas decisivas para “ajustes correcionais” ao Credo cristão, simplesmente evadiu-se de incumbir a Igreja da relevância imprescindível de seu depositum fidei, deixando a Cristandade afundada nas dúvidas que sempre incomodaram e desesperaram as almas dos crentes. I.e, “pelo medo de fazer a criança chorar de fome, preferiu deixar a criança com o bico do que tirar o bico e dar o seio”. Pelo medo de gerar antipatias semelhantes às que Pedro temeu ao negar Jesus, Lewis decidiu dar apenas o leite espiritual, negando o alimento sólido.
Mas como se pode concluir isto (de um autor que foi tão longe na profundidade teológica)?: Só enxergando o líquido e o sólido!… Mas para ver tudo isso, só a experiência da revelação íntima aprofundada pode saber que alguma coisa foi negada para as massas e adicionada a indivíduos, independente de raça, sexo, classe social, idade, cor, religião e credo. E neste particular, ter suficiente conhecimento da vida e obra de CS Lewis para perceber onde ele foi muito além na Revelação e onde ele foi temeroso e omisso. E isto talvez não seja suficiente… pois há outras “qualidades” e dons espirituais envolvidos, os quais podem interferir para o êxito ou para o malogro desta missão íntima do Senhor. É isso.
E por que cargas d’água Deus aceitou este jogo de revelar-se mais a uns e menos a outros? Ou qual a utilidade de deixar multidões quase cegas e indivíduos isolados com um conhecimento de Deus exponencial? Seria a resposta a “simples” constatação de que as massas são mesmo medíocres ou alienadas e por isso só podem receber a verdade a conta-gotas? Não sei. Não posso saber nada sobre isso, mas me parece ter sido o próprio Lewis a esboçar uma resposta mais aproximada, quando falou das “diferenças de qualidade no material com que as almas foram feitas”, periclitando a idéia geral de que Deus não faz acepção de pessoas. Aliás, se não me engano, este conceito já vai para a cucuia pela simples verificação de que Deus se revela de modo diferenciado para cada alma em particular, e esta consciência é a única coisa que pode justificar um discurso como este. Porque no mais, a rigor, se as massas não percebem que Deus lhes fala (ou tenta falar) de modo especial no silêncio da noite ou na intimidade da alma, então é melhor mesmo que assumamos a “covardia” de Lewis e digamos com ele: Deus só fala mesmo às massas.