Momentos de dor e pavor quase nunca são encarados como obra do Senhor em nossas vidas, mas as feridas nas costas de Aravis provaram que o salário do pecado é o sofrimento.
Num dos mais belos e contundentes livros das “Crônicas de Nárnia”, único onde os quatro personagens principais aparecem como adultos vivendo um longo tempo de paz em Nárnia, diversas lições de vida são dadas aos leitores mais atentos, ávidos por aprender com exemplos vivos aquilo que a Palavra de Deus teve pouco espaço ou muita dificuldade em abordar, até para não “encher o mundo de livros” (Jo 21,25). Porém a maior lição foi certamente a conversão de Aravis, linda jovem calormana em fuga daquilo que para ela seria detestável, um destino para lá de aterrador: casar obrigada com um conselheiro idoso da Corte da Calormânia.
O modelo de atuação de Deus na vida de Aravis é o mesmo explicitado por Paulo no capítulo 12 da sua segunda epístola aos Coríntios, onde o apóstolo revelou receber de Deus um espinho na carne, mensageiro de satanás, para esbofeteá-lo e torná-lo humilde diante do Senhor. É um episódio que prova, então, que a vida cristã pode ser muito dolorida, e as dores podem alcançar até a alma, como o próprio Jesus experimentou no Getsêmani (difícil é entender porque o próprio Deus, 100% santo, precisaria sofrer na carne até angústias de morte, quanto tal sofrimento em nada aumentaria a santificação do Nazareno).
Difícil também é fazer com que as igrejas reformadas entendam que a dor adicionada à santificação é uma parte imprescindível do plano de salvação, pois este pressupõe o ingresso no Céu somente de almas 100% santas (o protestantismo acredita que nada mais é preciso para a salvação, exceto a fé pura e simples em Cristo, como se esquecessem do versículo que diz “sem santificação ninguém verá o Senhor” – Hebreus 12,14 – ou como se pensassem que é possível ficar no Céu e não ver Jesus!). Com efeito, porém, se há necessidade de dor para a cura, então a hora da morte não é necessariamente uma entrada no Paraíso, e muito menos no inferno, ficando claro então a existência de um terceiro destino post-mortem (este assunto perfaz uma discussão completa nos livros “Você é um fantasma e não se enxerga” e “O Grande Divórcio do Egocentrismo”, que o leitor pode adquirir pelo portal das editoras Agbook e Clube de Autores).
Assim sendo, chegou a hora – e já vem tarde – onde a cristandade poderia, pelo menos em termos de Escatologia, ter um pensamento mais unanimizado, já que esta matéria é regida tão única e exclusivamente pela Revelação, ou que somente esta pôde fundamentar o Catecismo e outras fontes aceitas como canônicas. Por mais que padres e teólogos afirmem ter a inspiração do Santo Padre ou do Magistério da Igreja, todos estes chegaram às conclusões do Catecismo com base no que revela a Bíblia, e por isso um consenso é possível. Como a Palavra de Deus também foi escrita com base nas tradições orais do povo crente, é óbvio que a Tradição também pode e deve ser ouvida por todas as igrejas. Eis aí a união sonegada. Eis aí a tristeza de Deus.
Pior; as histórias de fantasmas vagando na terra, que provam que a dor da alma pode se manter após a morte, também são negadas por muitas igrejas, ferindo frontalmente os evangelhos, os quais deixam várias ocorrências de prova da tranquila fé dos apóstolos nos desencarnados (fé esta jamais negada ou combatida por Jesus, segundo CS Lewis).
Isto posto, a verdade é que desde a Queda de Adão, todo o plano de Deus se concentra num difícil e doloroso resgate da alma humana, cujas mistagógicas operações perpassam todos os meandros da vida humana em todos os tempos, seja ela habitando a carne, seja ela desencarnada (uma dessas estranhíssimas operações mostrou o Livro de Jó, quando um espírito mau – talvez um anjo mau – foi aceito por Deus como o responsável por infligir sofrimento a Jó, o que ainda hoje soa, até entre teólogos cristãos, como hipérbole alegórica, simples mito ou parábola encorajadora). Contudo, o enfrentamento desta questão crucial de cara, com coragem e confiança, é o único jogo que nós não devemos deixar de jogar, e nada mais deveria intervir ou atrapalhar nossa caminhada nesta direção, sobretudo coisas mesquinhas como interpretações proselitistas.
A rigor, a milagrosa consciência de estar perdido, de precisar de Deus, de ter tido a colaboração dEle e de que a Ressurreição não obra milagre, exceto aquele que nós permitirmos operar em nós, é a bola da vez e deveria ocupar 100% de nosso tempo escatológico, onde buscamos o encontro com o Pai. O resto, as “querelas doutrinárias” de cada igreja, jamais poderiam chocar-se neste quesito em particular, e as almas deveriam estar sendo tratadas como almas, isto é, como fantasmas que somos, fugindo de nossos próprios fantasmas pelos desertos, como fez Aravis.
Então as chicotadas nos lombos de Jesus, o espinho na carne do apóstolo e as unhadas dilacerantes nas costas da menina fugitiva, deveriam estar no nosso cardápio diário de consultas santificadoras, onde todos entendêssemos tais operações como cirurgias reparadoras realizadas pelo Médico dos médicos, sem as quais morreríamos como vermes imundos. A consciência dessa realidade é tão crucial que obstaculiza qualquer pregação cristã que a sonegar (atrapalhando todos os ministérios e missões), e o combate ao medo da verdade deveria ser a tarefa número um de todas as igrejas.
Finalmente, a experiência de sofrer por Jesus é uma bênção inefável e difícil de explicar, e só pode surtir o efeito compensador na Terra se a consciência do crente estiver bem firmada na confiança e na caridade. Sem essas contrapartidas providenciais, a dor é somente dor (num sentido que nem quero lembrar), embora a maioria dos teólogos creia que nenhuma dor é em vão no plano de Deus. Se estamos no primeiro caso, oremos para compreender a situação e adquirir algum consolo divino. Se estamos no segundo caso, oremos apenas pela gratidão de sabermos que o Senhor está operando, e operando a única cirurgia cem por cento útil.