Assistir “VEJAM SÓ” é pasmar-se diante do diferencial de Lewis

Um excelente programa de debates evangélicos da televisão suscita uma fascinante descoberta: CS Lewis é outra história. A visão do irlandês é sempre maior que a dos pastores protestantes.

VEJAM SÓ

Ontem assisti ao excelente programa “Vejam Só”, da Rede Internacional de Televisão (RIT), comandado pelo inteligente pastor Eber Cocareli, em que o tema era a discussão de um trecho da Epístola de São Pedro, onde o grande apóstolo informa que Cristo pregou aos espíritos em prisão, seguido do trecho onde a carta diz literalmente que “o evangelho foi pregado também aos mortos”. Deste palpitante momento da TV evangélica brasileira, muitas pérolas de conclusões podem ser extraídas, e todas pasmam este telespectador por apontar para a Teologia Lewisiana, mostrando o quanto ela difere da maioria das premissas e interpretações ali defendidas.

Não há o que tergiversar aqui. O programa da RIT é confessamente evangélico e está no seu santo direito de debater o tema que quiser, sobretudo aqueles iluminados pela Palavra de Deus. Neste particular, aliás, é extremamente louvável, em vista das demais emissoras e programas evangélicos que apenas “evangelizam”, cantam, oram e nada mais. Com efeito, sua agenda diária é sempre rica e instigante e seus ouvintes e fãs têm muito a ganhar ao acompanhar os instrutivos debates. O público evangélico deveria assistir o ‘VEJAM SÓ’ todos os dias, pois ele se constitui, nestes últimos tempos de pregações vazias, num verdadeiro oásis no atual deserto da homilética, com um ensino bíblico livre e sem os velhos clichês proselitistas.

A cristandade reformada, entretanto, ouvirá ali tão somente conclusões que reforçam os principais “dogmas” protestantes, oriundos do às vezes tosco entendimento da mensagem de Lutero, e assim outra vez a redundar em clichês irremovíveis.

No programa desta 5a feira, 25 de abril, onde o tema era excepcionalmente apropriado como exemplo do presente argumento, os leitores e sobretudo os estudiosos de CS Lewis ganharam um valioso documento de prova do quanto “Jack” via as coisas por outros ângulos, muitos dos quais a impedir as conclusões dos participantes do debate. Numa sentença só, poderíamos adiantar o nosso foco-tema e afirmar que só há duas saídas para o impasse: “ou Lewis é um completo desorientado, e ensina heresias, ou é a essência perfeita e única de ver a Revelação, como bússola para todos os cristãos”.

Porém, ao afirmar isso, entramos numa discussão que o próprio Lewis levou adiante em alguns de seus livros, a saber, a questão da autoridade da fonte. Com efeito, a pergunta direta é: “Que autoridade teria Lewis para asseverar certas posições que a cristandade reformada por inteiro rejeita ou torce o nariz para tratá-la com seriedade, num esforço hercúleo entre a simples antipatia e a pura rejeição? Por que cargas d’água um crente, ou pior, uma igreja, teria que afinar-se com aquele escritor em particular? O que haveria em Lewis que o tornaria um autor divino especial?”… Enfim, é por este ângulo que as águas irão escorrer e não temos nenhuma garantia de que este arrazoado angarie qualquer serventia ao seu final. Afinal, nós mesmos precisamos de muita massa cinzenta para ver a imprescindibilidade espiritual de Lewis, e, a menos que outras almas trilhem os mesmos caminhos, ou a menos que outras luzes brilhem noutras mentes, não há razão alguma para esperar um resultado diferente do que está posto na realidade, e por isso Lewis continua até certo ponto como um desconhecido, sendo encarado, via de regra, como mais um autor na vasta gama de leituras disponíveis nas livrarias evangélicas.

Porquanto colocar Lewis num patamar de instrutor dos cristãos, ou na frente da losa de todas as escolas bíblicas, seria (pensam os evangélicos) a reintrodução de uma velha prática idolátrica do Novo Testamento, quando Paulo pediu para que nem ele, nem Cefas, nem Apolo, nem nenhum outro, fosse “o cara” na liderança das igrejas, sendo aquele posto tão somente merecido por Jesus, o único pastor 100% divino. Isto serve para abrir os próximos parágrafos com o desafio de mostrar onde está a diferença que temos em mente agora.

Cristo é a Pedra fundamental, é a Fortaleza dos cristãos, é a Rocha-alicerce das igrejas, é o único bom Pastor, é o único digno de toda honra e adoração; e nisto estamos todos afinados, se não tivesse sido o próprio Cristo a pedir o pastoreio de sua igreja, deixado a cargo de homens de carne e osso, os quais seriam, a partir do Pentecostes, os pastores a instruir o rebanho e a fazer discípulos de todas as nações. Além de tudo isso, os pastores seriam gente treinada nas artes do pastoreio, e muito mais nas meditações e metodologias de evangelização, ganhando às vezes, para tanto, até uma ordenação sacramental para o exercício de tão sublime (en)cargo. [Nem vale a pena pensar aqui naqueles que usam o título de pastor para enriquecer].

Lewis jamais se formou em teologia e muito menos se ordenou sacerdote ou pastor, e por isso não teria, em princípio, qualquer prerrogativa de magistério eclesial, devendo, ele sim, ser um aluno e não um instrutor de rebanhos. Isto posto, até aqui carimbamos estes pontos como sendo um consenso entre nós, e nada desfaremos de seu arrazoado lógico.

Inobstante, há trechos nas Escrituras Sagradas onde os instrutores da Revelação (chamados de doutores e mestres) são colocados num patamar especial, e seu magistério, chamado de “dom de profetizar”, recebe credenciais de destaque na estrutura das igrejas, como formando uma tropa de elite dos exércitos do Senhor, instruindo até mesmo pastores (aliás, estes, quando merecem o nosso respeito, recebem instrução generalista e especializada de mestres e doutores em Seminários Teológicos, e os pastores se formam justamente para pastorear – cuidar – e não para instruir ovelhas nos apriscos, ficando a iluminação da Palavra de Deus a cargo dos ministérios especiais dos instrutores treinados na erudição e inspirados por Deus). É claro que muitos mestres de seminário também são pastores, mas cada um deles sabe o quanto o magistério é diferente do pastoreio, e o quanto cada área tem a sua importância vital para a saúde das almas.

Devido à explosão demográfica e ao inchaço das denominações, mui raramente “doutores e mestres” podem ensinar em igrejas, e aí a desgraça começa, quando o rebanho é deixado apenas à mercê de pastores e “obreiros”. A luz divina é abafada pela espessa copa das árvores prosélitas, e talvez nem haja a rigor um interesse mais profundo na robustez das almas, e sim no aumento das que frequentam os templos, enchendo os bancos dos pastores, nos dois sentidos. Isto pode explicar, com certeza, porque a instrução culta aparece pouco nas EBDs, se é que elas ainda existem. Explica mas não justifica porque um CS Lewis, um JB Phillips, um John Stott, são tão pouco conhecidos no ambiente de culto. Mas voltemos ao tema da diferença que há em CS Lewis.Vejam Só = Pr Eber Cocareli

No programa de ontem, como sempre, o debate foi feito por 3 pessoas: o pastor Eber e mais dois convidados pastores, não lembro bem: um presbiteriano (teólogo) e um outro biblista, provavelmente da Assembléia de Deus. O pastor Eber chegou a falar que certa interpretação, sem a vizeira protestante, poderia fazer reaparecer a noção de Purgatório, imediatamente abandonada – sem qualquer exame – por ter origem católica. Porém o mistério perdurou em todas as entrelinhas do debate, exceto quando os três se sentiam incomodados por ele e corriam para debelá-lo como um incêndio na própria casa. Não havia o que fazer.

Quando todas as declarações bíblicas são contempladas sem medo, não há como fugir à verificação de que existem de fato “vários infernos” (o pastor assembleiano assim o disse), e que o verdadeiro e último inferno, sentenciado para receber almas após o Juízo, é o tal Lago de Fogo, de onde Jesus também possui as chaves. Logo, diante da TV, com aquele único debate, a verdade bíblica ficou escancarada, e os depoimentos deixaram entrever outro destino escatológico, além de Céu e Inferno. Falou-se em abismo, em Sheol, em Geena, em Tártaro, em mundo dos mortos, etc, mas ninguém lembrou do “Vale da Sombra da Morte” indicado no Salmo 23.

Dado o tempo curtíssimo para debater um tema que a cristandade estuda há séculos (e o protestantismo tardio nega veementemente – veja NESTE link), ali não se questionou nada acerca da situação das almas na hora da morte, em seu estado bruto ou polido, mas jamais santificado para entrar no Reino de Deus. Nem mesmo o versículo que diz “sem a santificação ninguém verá o Senhor” foi ventilado, pois ele comporta uma carga escatológica de peso, levando imediatamente a duas possibilidades: (1a) Ou existirão almas salvas e cegas no Reino de Jesus, pois terão entrado no Céu sem estarem 100% santas!; ou (2a) existirá um lugar para onde essas almas irão para terminar sua purificação, para poderem ficar santas e “ver” o Senhor, e este lugar nem é o Céu nem o Inferno de fogo.

Assim, as letras garrafais do Purgatório se insinuaram sutilmente, e a sua entronização só não se deu “por medo da concorrência”… ou por medo do espelho que mostraria o erro colossal de escamoteá-lo. Nem o seu bisonho nome, que afasta crentes e santarrões, foi considerado inadequado para tipificar sua existência, o que poderia resgatar a ideia que esconde. Se pelo menos um dos debatedores tivesse passado por um momento de humildade e tivesse aventado a hipótese de admitir que, embora o nome do lugar não reflita a sua função (se se nega a purgação dos pecados para santificar almas), não é possível demovê-lo da doutrina, uma vez que não há como extraí-lo de textos e contextos bíblicos, sob pena de se criar uma lacuna perniciosa na Revelação, com sério prejuízo para o resgate das almas que eles querem salvar.

Entretanto, se a purgação fosse examinada e depois entendida como uma passagem por um período onde a alma estaria sendo “lavada” pelo Espírito Santo (I Pe 3,20-21 e Ef 5,25-26), enfrentando neste processo, inclusive, as dores angustiosas de Jesus no Getsêmani, então aí a soberania do Purgatório reapareceria triunfante, unindo crentes e católicos numa conversa profícua, com a qual lucrariam todas as almas telespectadoras daquele debate. Infelizmente aqui também a política é o que predomina, e as cores partidárias de cada igreja proíbem qualquer associação com impuros de ambos os lados, e as pedradas são para os espelhos de cada um.Lewis com livros à esquerda

É aqui que entra CS Lewis. O grande mestre escreveu sobre O Grande Abismo e ali explicou que aquele “acidente topográfico” não deve ser entendido como uma barreira física a separar dois lugares num ambiente de 3 dimensões! Explicou que a mesma ideia é passada nas Escrituras para outras situações, como entender que a igreja não é apenas templo e a caridade não é apenas esmola. A investigação mais minuciosa da Palavra de Deus vai mostrar justamente isto acerca do grande abismo, quando Isaías explicou que não é uma distância física que separa as almas de Deus, e sim um “divórcio espiritual”, explicitado na sentença: “os vossos pecados fazem SEPARAÇÃO entre vós e o vosso Deus”. Separação é sinônimo de divórcio e Lewis intitulou o seu livro justamente com este título (“O Grande Divórcio”), sendo mal traduzido para “O Grande Abismo”.

Em que isto se relaciona com o programa da RIT? É que não havendo barreira física alguma nem abismo nenhum entre as almas e o Céu, qualquer alma pode sair da região dos mortos (o Vale da Sombra da Morte) e subir ao Céu, complementando o processo de purificação iniciado desde a Terra e culminado numa espécie de “escola paradisíaca”, na qual alguém pode ser instruído por gente como George MacDonald e até por anjos! Eis aí a diferença!

Lewis então não recebeu a Revelação de Pedro (de que o Evangelho “também foi pregado aos mortos”) como uma metáfora vazia de significado prático, e muito menos como uma distorção voltada para a pregação audível levada aos vivos! Lewis viu mais longe e entendeu que nenhuma alma desce ao Hades sem que o seu Salvador não vá àquela porta e fique batendo, como diz o livro das Revelações (Ap 3,20). Entendeu que Deus é também o Senhor do Hades e tem as chaves de todas as portas e as abre quando e como quiser. Entendeu que não há nenhum lugar dentro ou fora de todas as dimensões criadas onde Ele não possa estar, como diz o salmista (Sl 139,7-12). Entendeu que Deus tem um poder e um amor tal que jamais deixaria uma alma naufragar na escuridão sem acender uma nova luz, como disse Isaías em Is 9,2. Enfim, Lewis sempre entende além dos olhos comuns da média cristã, e é por isso que deve ser consultado, sempre, e com a autoridade delegada por Deus, quando lhe deu aqueles olhos de lince (aliás, de Leão).

Usando os olhos de Lewis ninguém tem dúvidas. Não haveria a discussão daquela 5a feira na RIT, e a conclusão final seria unificadora e cristalina: há uma região post mortem para onde as almas vão e se purificam (ou não) e é isso que responde ao suposto mistério oculto nas palavras de Pedro, que tanto estremece a fé de alguns e provoca discussões sem fim. Era um ponto excelente de união do Cristianismo, sem precedentes, porque trata daquilo que TODAS as almas enfrentarão após a morte, e sobre o qual não poderia haver discórdia! Nem Lutero o negou!

Infelizmente, a cristandade não é regida pelo bom senso como são as regras de trânsito ou do xadrez, ou o bom senso já foi sepultado há séculos. As denominações cristãs se regem pela política e pelo sectarismo, e o amor a Deus geralmente fica abafado pelas intriguinhas denominacionais, e é a ira e o revanchismo que prevalecem, como se não fôssemos irmãos comprados pelo precioso sangue. Certamente o sonho de Deus acerca da união dos cristãos vai ficar para a posteridade, com muitas lágrimas, após todo o tempo que durar a estada de cada alma no Grande Vale.

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