Um impressionante trecho do livro “Cartas a Malcolm” (da Carta VIII), no qual Jack tece o mais profundo arrazoado acerca da “Teologia da Paixão” (“as dores finais de Cristo”), prova ser um raciocínio só possível a um gênio.
No último livro de CS Lewis (póstumo) e num dos mais recentes lançados no Brasil, chamado “Oração: Cartas a Malcolm”, o mestre irlandês mergulha tão fundo na mente de Deus que não é possível extrair qualquer conclusão do caso que não seja a admissão de uma obra de gênio, num raro e até milagroso momento de cumprimento de uma ousada profecia Paulina que diz: “Porque, quem teria conhecido a mente do Senhor, para que pudesse instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo” (I Coríntios 2:16). Tão sublime é esta profecia que muitos teólogos e exegetas afirmam, veja bem, “se ela não pode ser aplicada a nenhum dos santos, quanto mais aos vivos”. Inobstante, este articulista não afirma isto com a mesma convicção dos teólogos, pois crê que CS Lewis também não o fez, pela razão óbvia da possibilidade descortinada por ele mesmo.
Todavia e por isso mesmo, não é bom o leitor ler o presente artigo sem ver antes o que disse Lewis. Assim sendo, convido-o a ler o trecho no Blog da EAT, NESTE link. De posse do pensamento de Lewis, vamos elencar as ilações passíveis de serem feitas a partir delas, e convidamos o leitor a devotar toda a sua atenção aos raciocínios ensejados pela ‘ousadia’ de Jack.
No primeiro parágrafo inteiro, ele analisa cada um dos recursos aos quais Cristo poderia recorrer dentro da sua macabra “noite traiçoeira”, noite medonha de trevas pelas quais todos nós passamos, em menor ou maior medida. E ele diz logo que, sem dúvida, aos santos caberá uma noite ainda mais aterradora, justamente pelo grau de proximidade desses com o Autor de sua fé. Então, estendendo o raciocínio, conclui que, se um santo vai passar pela densa treva, o quão densa não será a noite pela qual o Filho de Deus passará? E daí, incontinenti como sempre faz, Lewis estica a baladeira e desce cada vez mais fundo na angústia divina, apontando cada uma das instâncias que Jesus procura para aliviá-la, e delas não recebe qualquer alívio, pelo contrário, afunda-se na solidão extrema, apenas acompanhada das risadas subliminares do inimigo e dos infernos que estão à espreita e O esperam.
E cada item dessa procura é citado como uma chicotada: primeiro a súplica rejeitada; segundo, a fé na fidelidade dos amigos íntimos (seus soldados em batalha), que parecem hipnotizados num sono robótico; terceiro, a igreja (no singular, ampliando o sentido) que Ele mesmo criou, numa decepção das mais previsíveis, segundo Lewis, já que TODAS as instituições – mais cedo ou mais tarde – se voltam contra aquilo ou contra o alguém que as criou; quarto, o Estado, no cúmulo do desespero, que é quando Deus tem que ir a um tribunal humano (I Co 6,1-9) pedir a justiça que os crentes não lhe dão! Vergonha completa nossa!; quinto, o próprio povo, a quem ele curou, protegeu, salvou… Este também O rejeita e ainda O condena, assassinando-O e libertando Barrabás!; e sexto, por último, no último dos últimos apelos, Ele se volta ao próprio Pai! E o resultado? Ele acabou perguntando: “Pai, por que me abandonaste?”. Neste ponto, Lewis abre um curto parágrafo e explica que tudo isso é a condição humana em si, ou seja, que ser homem é sofrer mesmo. É procurar uma saída e não encontrar. É cair num oceano de tubarões e o único barco que passar é pilotado por quem quer a sua morte.
O parágrafo seguinte é por demais complexo. Tão complexo que Lewis se comporta de modo inédito para seu histórico de atendimento ao versículo petrino, que diz que devemos estar preparados para oferecer os argumentos de nossa fé a todo aquele que nos pedir razão da esperança que há em nós (I Pedro 3,15). O ineditismo é ver Lewis fazer uma pergunta que nem ele mesmo responde, transparecendo uma pré-angústia dele ao seu próprio calvário interior, da noite escura que viveu desde o prenúncio da morte de sua amada Joy. Este é o ponto: “Em relação ao abandono final, como entendê-lo ou mesmo suportá-lo? Será porque Deus mesmo não pode ser Homem, a menos que Deus pareça sumir diante de Sua necessidade maior? E, se assim for, por quê?”: Quem responde essa??? Lewis nunca foi chegado à questão dos porquês, mas sim aos “para quês” (pois estes fornecem uma pista muito mais exata da soberania de Deus sobre o tempo e o espaço), embora todos os raciocínios dele atendam aos porquês de suas próprias curiosidades, dando respostas a perguntas que nem foram pensadas por outros! Logo, por que Lewis usou aqui o porquê???
Em seguida, ele relaxa e desanda a destilar seu raciocínio fluente e desce ao profundo, sem se importar que o leitor esteja voando que nem condor, ou com sua dor voando, temendo ou antevendo sua própria noite de trevas. Aí então fala, como se estivesse conversando aqui e agora, e diz: “Às vezes, eu me pergunto se, de fato, temos pelo menos uma pálida ideia do que o conceito de criação acarreta: Quando Deus criar, Ele trará algo à existência que não será Ele mesmo. Ser criado, de algum modo, significa ser ejetado ou separado”. Há algo mais elevado do que isto? Lewis foi além (ou chegou à questão shakespeareana antes que Shakespeare a tivesse formulado: “ser ou não ser? Criar ou não criar?”) de todos os limites inexoráveis da Criação divina, alcançando aquele ponto onde uma encruzilhada se apresentou para o próprio Deus, uma encruzilhada que nem a Onipotência pôde desfazer, ou desentortar, ou evitar, já que o drama de criar será, necessariamente, algo que fará surgir alguma coisa “não divina”, e, portanto, inexoravelmente limitada, imperfeita, falível, pecaminosa (no sentido de inevitavelmente deficiente) sem maldade, podendo se tornar má por sua própria decisão.
Isto impõe certos termos mais “condescendentes” até na compreensão da maldade de Lúcifer, já que o próprio ato de criar é uma “temeridade”, no sentido de deixar a própria onipotência sob o risco de conviver com a imperfeição, que jamais agrada a Deus. Isto prova que a criação, em si, é, antes e acima de tudo, um ato desesperado de amor da parte de Deus, que não se bastaria a si mesmo, e por isso sentiu, num certo ponto-tempo de sua existência perfeita, alguma espécie de necessidade, embora absolutamente nada lhe faltasse! Que o amor infinito pode “desesperar-se” – para amar além de si mesmo – e isto seria outro mistério insolúvel, que nem Lewis solucionou.
Lewis continua perguntando, dada a profundidade da questão: “Pode-se dar o caso de que, quanto mais perfeita a criatura, tanto maior será, em algum momento, a separação? São os santos, não as pessoas comuns, os que passam pela “noite escura”. São os homens e os anjos, não os animais, os que se rebelam. A matéria inanimada dorme no seio do Pai. A condição de ser oculto de Deus talvez cause maior dor ao pressionar aqueles que, sob outro aspecto, encontram-se mais próximos dEle, e portanto Deus mesmo, feito homem, será entre todos os homens aquele a quem Deus relegará ao supremo abandono?”… – Aqui surge o paralelo inevitável com as dores das relações humanas: quando elas vêm daqueles que mais amamos (nossa família), elas são muito mais dilacerantes, e o ódio de um pai a um filho é uma facada que corta o coração de qualquer um, inclusive de bandidos, e por isto estes não perdoam incestos e outros crimes, quando um pai pedófilo chega a um presídio.
Ou seja, voltando a Lewis: QUEM poderá responder a isto? Ouso pensar que nem o maior de todos os arcanjos do Céu, terá esta resposta. Todavia, tudo leva a crer que só uma experiência vívida numa terrível noite escura poderá fornecer, àquele por ela vitimado, algum vislumbre dessa resposta, e quem a obtiver não a repassará a ninguém, como Cristo não a repassou. As pessoas comuns, em seus tormentos, podem contar. Os santos não. Logo, a angústia maior e o calvário da alma são não apenas necessários, mas o único caminho de volta à perfeição, e, por ter a presciência disso, Jesus aceitou o desafio completo da via sacra, proposto desde antes da criação do universo (Ap 13,8). A distinção entre santos e pessoas “comuns”, que Lewis aqui destila sem qualquer temor, leva os olhos do leitor para os extremos opostos (Deus e os animais) e faz ver o ingente abandono de Jesus na cruz e a “segurança tranqüila” da vida animal, numa lição de teologia cujo registro deve estar num “manual para demônios arrependidos”, por assim dizer. Pois Paulo diz que o Deus-crucificado expôs os demônios – ou expôs aos demônios – na hora derradeira da Sua máxima dor, misturada à angústia do abandono que deve incomodar também aos anjos decaídos (Col. 2,14-15).
Isto comprova a conclusão de Lewis de que deve haver sim “uma angústia, uma alienação, uma crucificação envolvida no ato criativo. Porém Deus julga valer a pena a distante consumação” ou o risco de “perder alguns” por seu próprio Livre-arbítrio, e portanto, não estarão perdidos no sentido condenatório, já que por si mesmos decidiram abandoná-LO.
Por último, Lewis cita um teólogo do século XVII, o qual disse que “se Deus fingisse ser visível, Ele teria tão somente enganado o mundo”. E arremata dizendo que talvez Deus finja sim, um pouco, mas apenas “para aquelas almas simples que necessitam de uma boa medida de ‘consolação palpável’…” (esta consolação palpável pode incluir, sem maiores prejuízos ao arrazoado de Jack, a hipótese de que as almas comuns, ou limitadas mentalmente, precisariam de algo concreto, tangível, como fotos e imagens, para sossegar a sua fé sedenta de matéria, matéria esta que Deus não desonrou e, ao contrário, a usou, por exemplo, na Eucaristia; entretanto, mistério dos mistérios, a Eucaristia não engana ninguém, pelo contrário, mostra o Cristo mais espiritual do que nunca). Porém, na verdade, o “fingir divino” estaria na materialidade de Jesus, na sua vida humana e no assumir a sua dor, a qual necessita de uma redução ou até de uma anulação da divindade (que não sente dor alguma) para fazer-se sentir, num raciocínio que Lewis já explicou no livro “Mere Christianity”. O Pai divino da Santíssima Trindade jamais poderia vir e habitar entre nós, exceto pela Sua redução drástica* e até a sua anulação, deixando de ser Deus, o que levou muitos teólogos, antigos e novos, a admitir a “Teologia da Eleição de Jesus” (TEJ: tão coerente quanto a da “Divindade Indesfazível de Jesus”: DIJ) como chave para entendimento das questões que Lewis tratou aqui. [* = Uma vez Jack chamou a redução drástica de “Transposição”].
I.e, para a TEJ, quando Jesus nasceu, a pessoa da Trindade que Ele era deixou de existir e fez-se 100% homem no ventre de Maria, passando a “reaparecer gradativamente” ao longo da vida do Nazareno, consubstanciando-se no texto que diz “Ele crescia em sabedoria e em graça perante Deus e os homens” (Lc 2,52). Os próprios apóstolos teriam visto que, uma alma daquelas, com tamanha bondade e inocência, só poderia mesmo ser eleita por Deus, já que ninguém foi tão puro e magnânimo como Ele. Que o Nazareno, que havia deixado de ser Deus, recuperou a sua divindade ao longo de sua vida e missão, servindo de exemplo perfeito para cada um de nós, que podemos crescer até à perfeição, como diz Paulo em Fp 3,12, e como é desejo de Deus nas palavras de “Oyarsa”). Esta é a coerência intrínseca do raciocínio da TEJ. Já na outra teologia, a DIJ, Jesus nunca deixou de ser Deus, e apenas fez a sua divindade ocultar-se de sua mente e preservar-se “congelada” para a operação de milagres, cuja utilização só viria quando ocorresse aquilo que o Nazareno chamava de “é chegada a minha hora”, como foi dito quando Ele operou o milagre de Caná. A partir dali, Ele apenas descortinou a sua outra natureza, a divina, sem jamais tê-la abandonado. São estas as duas teologias que C.S. Lewis nos obriga a repensar ali. A propósito, escrevemos um livro sobre este assunto, o qual foi prefaciado pela Dra. Gabriele Greggersen, intitulado “Radiografia de Maria”.
Finalmente, a questão é que acredito jamais ter existido alguém que fosse, com a sua “simples” inteligência, até onde Lewis foi, nem ninguém que jamais irá. Nossos olhos se obrigam a voltar para figuras como os nazireus, como Enoque, Noé, João Batista e outros raros da Palavra de Deus. Se tais pessoas existiram um dia, é porque talvez ainda possam existir. É aqui que colocamos CS Lewis. Ele está no mesmo patamar mental de um Enoque e de um João Batista. Ele foi, por obra e graça de Deus, elevado em espírito durante toda a sua vida, embora só tenha se dado conta disso após a sua “noite negra”, ou nem mesmo com ela, dada a sua extrema humildade. Que ele nos sirva de modelo de santo vivo, já que ninguém morre (Lc 20,38), porque exemplo para os que estão no Além ele já é, desde que lá chegou.
Uma resposta a Carta que CS Lewis escreveu com a mente de Cristo