Num duro raciocínio invertido, o apóstolo Paulo destila uma teologia problemática para explicar a doutrina da salvação, e deixa em evidência uma discussão que nem deveria existir entre cristãos
O apóstolo São Paulo é sem dúvida o maior nome entre os pregadores cristãos e a Teologia cristã perderia toda a sua força se fossem amputadas, da Palavra de Deus, as suas oportuníssimas contribuições. Todo o nosso pensamento ocidental, e além, toda a compreensão humana da divindade ficariam seriamente prejudicados sem a orientação da mente de Paulo, e o apóstolo dos gentios é respeitado até entre não-cristãos. Não há como desenvolver qualquer raciocínio teológico sem utilizar os argumentos daquele ex-legalista judeu, e toda a Bíblia poderia ser uma grande perda de tempo sem a hermenêutica paulina da Revelação.
Isto é dito para que o leitor possa memorizar o quanto este autor aprecia a teologia de São Paulo e o quanto se considera dele seguidor, já que CS Lewis, de quem sou fã incondicional, teve no apóstolo o seu grande mestre, em termos das Escrituras Sagradas. Com efeito, quem for fã ou leitor de Lewis não poderá negar que, salvo melhor juízo, mais de 90% do pensamento lewisiano está baseado em Paulo, embora, é claro, João também teve enorme influência sobre Lewis e outros autores canônicos idem, bem como mestres extrabíblicos, como George McDonald, RR Tolkien, Milton, Platão e tantos outros. Não há nenhum demérito em ter a sua fé alicerçada em cérebros deste quilate, e os cristãos modernos estão com a fé tão fria ou vacilante justamente por lerem pouco ou só lerem a Bíblia, o que quase dá na mesma.
Todavia e inobstante, nem Paulo, nem João, nem Pedro são perfeitos, ou que podem ter a sua palavra sequer comparada à letra dos discursos do Senhor Jesus; e se tal coisa se diz dos autores canônicos, muito mais valerá para os extrabíblicos, incluindo aqui o próprio Lewis. Assim sendo, já que o homem-foco deste artigo é Paulo, foi ele mesmo que, uma vez tendo ‘brigado’ com Pedro pela “língua-solta” do grande Barjonas, também soltou a língua precipitadamente em algumas ocasiões, numas das quais prejudicando a mensagem divina NA HORA em que falou, outras vezes dias depois, outras vezes até nossos dias, como veremos aqui.
Mas antes de entrarmos no exemplo básico deste nosso arrazoado, vejamos outros dois exemplos de palavras “inadequadas” de Paulo, por assim dizer.
(1o Exemplo de palavra inadequada): A mais conhecida foi uma precipitação dele perante uma plateia de doutores e filósofos no Areópago, quando ele vinha desenvolvendo um discurso muito bom de aproximação daquelas consciências em direção a Cristo, quando, num determinado momento no meio do discurso (que ele talvez julgou perto do final e por isso precisava ‘apressar’ as coisas, esquecendo-se de que aquelas discussões na época levavam horas e às vezes eram retomadas no dia seguinte!), Paulo ousou tocar na expressão “ressurreição de mortos” para uma audiência acostumada a não apenas ver a morte quase todos os dias, mas a estudá-la com o que havia de melhor à época! – Para o leitor ter uma ideia, seria o mesmo que falar em milagre de Deus numa roda de cientistas ateus. E o resultado? Ora, imediatamente a pregação dele foi CORTADA abruptamente, bem no meio, como se Paulo tivesse literalmente vomitado nos bancos da praça onde os sábios estavam sentados, afastando todos eles da “fedentina da crença” (para ateus, a fé fede). Ou seja, de um pulo, todos eles disseram, até de certa forma educadamente: “Ah, se é sobre ressurreição, mais tarde te ouviremos”… – Atos 17,16-33.
Antes de irmos ao segundo exemplo, vale investigar se haveria alguma maneira de conduzir aquele discurso sem falar em ressurreição. Sim. Havia sim. CS Lewis é uma prova disso. Quando Lewis fala sobre a Ressurreição, já deixou a cabeça dos ateus bastante “amaciada” para o choque da Revelação, separando aqueles mais empedernidos (dizendo: “estou falando apenas para quem crê que o Filho da Virgem é Deus”) daqueles ateus que ainda têm uma ‘sombra de crença’ no coração, que são os ateus-evangelizáveis. Para os de coração duro, o discurso entra pela longa jornada de um livro inteiro de apologética (como “Milagres” ou “Cristianismo Puro e Simples”) ou pela jornada de 40 livros de lógica pura, ao fim dos quais a descrença só se mantém pelo atestado de limitação mental que o próprio ateu atribui a si mesmo: isto quando percebe tal insinuação na leitura de Lewis (em meu artigo “Como seria o discurso de Paulo no Areópago?”, o leitor pode verificar melhor aquilo que estamos defendendo aqui – veja este título no Google ou neste link).
(2o Exemplo de palavra inadequada): Outra precipitação de Paulo que pode não ter sido provocada por pressa, mas sim pelo receio de encontrar na igreja alguma raiz de heresia de origem externa, foi quando ele declarou, sem pestanejar pelo apoio do Velho Testamento, que: “seja Deus verdadeiro e TODO homem mentiroso” (Rm 3,4), esquecendo-se de que ele também é homem e até então ninguém tinha provas para (e muito menos obrigação de) crer que ele FALAVA PELO Espírito de Deus, como até hoje ninguém tem prova disso, cabendo apenas a fé nos pregadores, fé na autoridade – como defende Lewis –, fé esta que o próprio Cristo disse ser perigosa e temerária (Mt 24,4-5). Ao dizer “seja todo homem mentiroso”, Paulo se põe ACIMA do nível humano para ser crido, ou se iguala a qualquer um de nós, caindo na desconfiança comum da espécie filha de Adão e Eva (Jr 17,5). É óbvio que a ideia já vem desde o Velho Testamento, quando o povo ainda cria – e tinha obrigação de crer por ordem de Deus – nos profetas inspirados pelo Senhor. Porquanto se todo homem for mentiroso, então toda a Bíblia corre perigo, num mundo descrente, afora as outras inúmeras dificuldades que a fé enfrenta para adquirir algum valor numa era científico-tecnológica. Deus, que viu na fé todo valor, é o primeiro a retirar obstáculos e aplainar os caminhos da fé para os pregadores, e precisa que estes tenham autoridade, i.e, que o povo creia neles.
(3o Exemplo de palavra inadequada): Porém o grande erro metodológico de Paulo foi sem dúvida provocado por falta de uma melhor clareza no assunto, já que nem Lewis, 2.000 anos depois e iluminado por toda a reflexão cristã ao longo dos séculos, conseguiu responder com exatidão ou em definitivo, em se tratando de uma matéria onde o próprio Deus fez algum tipo de silêncio, não porque não tivesse a resposta, mas pela impossibilidade da matéria caber num cérebro tão minúsculo quanto o nosso. Trata-se da ocasião em que Paulo, mais uma vez com os romanos (Rm 9,15-21), tratou de reintroduzir o tema escorregadio da Predestinação na sua explanação teológica de alto nível, talvez crendo que os de Roma tivessem nível teológico intelectual suficiente para ouvir QUALQUER COISA, no desespero de deixar a mensagem cristã segura para a posteridade. A explicação pode ser ESTA, sem dúvida, mas ela também pode ser limitada pela visão deste articulista, influenciada pelos meus próprios receios de ver a mensagem cristã não ter guarida nos corações. Foi quando Paulo, então, como se tivesse esquecido das belíssimas “Passagens da Misericórdia” (João 3,17; 10,28; 12,47; 15,4 e 16; 17,19-24; At 17,30; Mt 12,50; 18,14; Fp 2,12-13; I Ts 4,3; I Pe 2,15; II Pe 3,9; I Jo 2,17; At 2,21; I Tm 2,4), deixasse aos ouvintes uma única opção de salvação, e esta ainda A NÃO DEPENDER da voluntariedade da fé que ele mesmo defendeu alguns capítulos atrás e à frente, até na mesma carta, sendo ele próprio exímio conhecedor de que a fé só tem valor quando é VOLUNTÁRIA, e, portanto, somente assim capaz de salvar, e sem a qual é impossível agradar a Deus (Hb 11,6).
No problemático momento de seu temor, Paulo defendeu que por mais que alguém QUEIRA a salvação (a maioria de nós A QUER de verdade), ela não virá a não ser que Deus A QUEIRA, como se o apóstolo dos gentios tivesse alguma dúvida da vontade de Deus, que todo mundo sabe bem que é a salvação do maior número possível de almas, ou TODAS, como dizem os textos João 6,39 e 18,9 e todos os citados no parágrafo acima. Nem mesmo a morte física está naquilo que a vontade de Deus poderia desprezar para ajudar a todos os mortais (Ez 18,23 e 33,11), quanto mais a segunda morte, a morte espiritual. Se Deus tivesse qualquer ingerência sobre a vontade da salvação, então nem haveria um plano de Misericórdia, e até esta estaria sob a dúvida dos crentes.
O que mais espanta neste caso é que Paulo parece, na Carta aos Romanos, ora confuso com o legado do Velho Testamento, ora indeciso quanto ao Calvinismo ou Arminianismo, que nem existiam ali e, ao contrário, nele se basearam. Releia Rm 9,15-21 e veja como os gritos agressivos desta passagem vão de encontro ao capítulo seguinte (Rm 10,9-13 e 11,1), em que a ternura e a pungência de suas conclusivas – que mais parecem um apelo dramático de Deus – deixam qualquer um de nós feliz e seguro de ser desejado e procurado por Deus. Não citei o capítulo anterior (Rm 8…) por admitir a possibilidade de alguém dizer que o que Paulo disse DEPOIS vale mais do que o que ele disse antes… Mas o que ele disse ali também contradiz o capítulo 9. E já que é o depois que importa, veja o que Paulo disse em I Co 3,22-23.
Explicando melhor, veja que falando por Deus e dizendo coisas como “compadecer-me-ei de quem eu quiser me compadecer, e terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia”, ou conclusões grosseiras como “assim, pois, isto não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus se compadecer (…); Logo, pois, Deus se compadece de quem quer, e endurece a quem quer”, Paulo desvirtua-se completamente como um bom explicador da Revelação, ou até como aquele Paulo que escreveu aos Coríntios: “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (II Co 3,17), pois atropela suas próprias conclusões salvíficas, como a que pergunta: “porventura Deus rejeitou o seu povo?”, e a que encerra tudo dizendo “todo aquele que invocar o Senhor será salvo”. Como pode então ter dito aquelas grossuras inteiramente incoerentes com a infinita Misericórdia? (E ainda fez uma grossura contra o próprio Deus, quando falou, passando-se por outro: “Dir-me-ás então: De que Deus se queixa ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?”…). Onde estava a sua lembrança do pastor que faz de um tudo para buscar a centésima ovelha???
Não, querido Paulo. Não é assim que se prega para cativar almas perdidas. Almas perdidas são gente sofrida, geralmente experimentada na dor e na angústia, topando qualquer tábua de salvação no redemoinho da vida. São almas que de certa forma, por causa do sofrimento, já penetraram na chamada “Zona de Sucção do Ágape”, e portanto já alcançaram os ouvidos do Senhor e já fizeram seus olhos marejar. Se Jesus disse que não veio para os justos, e sim para os doentes, são justamente essas almas as mais doentes e mais carentes, podendo fazer parte do grupo de pequeninos pelos quais Jesus disse “ai daquele que fizer tropeçar um desses meus pequeninos”. São pessoas que têm experiência de mártir e alma de mártir, e por isso nem precisam transparecer crentes no mundo, e muitas vezes nem sabem que crêem e fazem a vontade de Deus (Mt 25,37-39).
Permita-me um último ponto. Qual seria o propósito de Paulo ao falar daquele jeito? A única explicação é que, sabedor de alguns tipos de almas que não se emendam nem com chicotadas, sendo tão empedernidas e rebeldes quanto satanás (daquelas que NEM A AMEAÇA DE CASTIGO resolve), então deixar na Bíblia um trecho onde o último apelo de uma alma fosse rejeitado por Deus, seria de fato o único modo de amolecer aquele coração de pedra, do mesmo modo como muitos homens só se tocam – ou despertam – quando a mulher que eles desprezaram diz pra todo mundo, menos para eles, que ela não os aceitaria NEM QUE eles lhe desejassem após todas as transformações de caráter que ela exigia… (porém ouvir ISSO de Deus é, sem dúvida, muito mais duro e cortante!). Esta é a única hipótese que valida o trecho de Romanos 9.
Finalmente, pode-se seguramente afirmar que a inexperiência de Paulo (pelo pouco tempo de nascimento do Cristianismo e nenhum outro bom ‘pregador-dos-gentios’ em quem se basear) foi a responsável por esse trecho da carta aos Romanos, e pensar que Deus faria “um vaso para honra e outro para desonra” é um fruto podre da hermenêutica do Velho Testamento, no qual Deus precisou mostrar a Sua “terrible face” para um povo de coração duro como o judeu, tal como explicou Lewis. Não se engane o leitor: a salvação é voluntária, e depende exclusivamente de sua vontade de salvar-se, pois (pode apostar que) Jesus QUER, DE TODO CORAÇÃO, a nossa salvação, e tudo fez e fará por ela! Aliás, Ele a quer desesperadamente, porque o ama infinitamente. Logo, para você ser salvo, basta confiar no infinito amor de Deus demonstrado em Cristo, amando-O tanto ao ponto de desejar cumprir, com prazer, a sua misericordiosa boa vontade.