Numa inevitável comparação, esta Escola vem oferecer aos seus alunos, em sua maioria cristã, uma visão das diferenças básicas entre o ensino da Igreja sobre o Purgatório e a compreensão de CS Lewis.
Num tema pouco explorado na atualidade (a Doutrina do Purgatório), poderão ser encontradas pistas seguras da orientação espiritual de todos aqueles que se interessam por Escatologia, e também, principalmente, de quem irá, cedo ou tarde, enfrentar a realidade nua e crua da vida após a morte. Sem ferir a dogmática católica e sem fazer julgamentos pessoais a indivíduos ou instituições, esta Escola vem explicitar aquilo que CS Lewis explicou em sua teologia, não apenas do que inferiu das Escrituras Sagradas e de muitos livros que pesquisou, mas principalmente daquilo que vivenciou pessoalmente, no ambiente inimaginável da vontade de Deus.
A rigor, e nos apressamos a dizer, quase não existem diferenças entre o que diz a Santa Sé e o que diz Lewis. Com efeito, por serem raras e sutis as diferenças, este articulista irá abordar, com dificuldade, o tema do título de dois modos sutis: discursivamente (e, dentro do discurso descontraído, apontando as distinções) e pontualmente, centrando o argumento no único ponto realmente importante.
O Purgatório é uma realidade real (sem pleonasmo), tanto para a Sé quanto para Lewis. I.e., nenhuma das duas fontes duvida disso (a prova da firme crença de Lewis no Purgatório esta Escola já deu, bastando o leitor consultar ESTE link). Ambas as fontes defendem duas afirmações acerca do Purgatório, postas a lume sempre que o assunto vem a baila, e nenhuma das duas discorda de que ambas as afirmações podem ser conclusivas, no aguardo da Revelação Final de Deus na Parusia. Refiro-me ao fato de que tanto a Igreja quanto Lewis, admitirem o Purgatório (dependendo da fonte teológica consultada) como uma realidade factual, ora como um lugar, ora como um “estado”. Esta última conceituação é de simpatia majoritária na Igreja Católica, notadamente no Novo Catecismo, no que combina com Lewis na visão geral do inferno, que para Jack é, além de um lugar por Deus “preparado para o diabo e seus anjos”, um estado d’alma, uma infeliz tentação em que a alma caiu, enovelou-se e enlameou-se, e da qual, infelizmente, passou a gostar e a se viciar em seu estranho prazer.
Assim, este estado interior infernal, que o Novo Catecismo compara ao Purgatório, é admitido por Lewis como uma prova da presença antecipada do inferno no coração do Homem, o que não invalida a existência de um lugar (supradimensional) no qual as “almas-do-inferno-interior” vagam sem rumo, podendo, inclusive, aparecer aos vivos e até assustá-los. Ao final do raciocínio, Lewis nos conduz a ver que este estado interior infernal, se for levado até às últimas conseqüências “em vida e no além”, fará com que seu possuidor caia no abismo escuro da vontade luciferiana, ali “fundindo” sua alma com a de satanás e aí sim, passando a habitar um lugar (supradimensional) “preparado para o diabo e seus anjos”. Eis acima o resumo mais aproximado: pedimos ao leitor que releia o parágrafo que acabou de ler, dada a quantidade de informações e detalhes necessários ao seu entendimento.
Se o leitor for mais atento, terá percebido que então, assim sendo, a grande diferença entre o que diz a Igreja e o que diz Lewis, está no fato de que para este, o Livre-arbítrio (dado a todas as almas de animais racionais desde o início da Criação) JAMAIS TERÁ FIM, ou seja, Deus jamais interferirá para diminuir e muito menos para extinguir a liberdade de cada pessoa racional; o que é, além de uma gloriosa bênção dos céus, uma responsabilidade terrível, pois eternamente caberá à criatura o seu próprio destino, tendo Deus se colocado voluntariamente numa condição de “incapaz” de impedir qualquer desvio de vontades, sem desobedecer seu próprio Livre-arbítrio que foi feito Lei para as criaturas e também para Si mesmo!
Isto posto, a GRANDE DIFERENÇA aparece aqui, isto é, que para Lewis uma alma pode continuar pecando ou voltar a pecar após a morte, já que é sabido que existem quatro espécies de pecado, todas reconhecidas pela Igreja, que diz: “confesso a Deus, todo-poderoso, e a vós irmãos, que pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras, atos e omissões”. Logo, já que enquanto na carne as almas pecam por pensamentos, é óbvio que poderá pecar também após a morte, já que continua a pensar livremente, podendo até escolher seguir a Jesus ou não. Claro que não há mais os pecados corpóreos que havia na Terra, já que agora, sem carne, não poderá mais ferir ou matar ninguém. Porém aqui também Lewis vai além.
Para Jack, a Ressurreição não ocorre apenas como um ato isolado no tempo e no espaço, no qual os mortos terão seus corpos refeitos após a parusia. Para Lewis, a ressurreição é um efeito “natural” da evolução das almas, e ocorrerá independente do tempo dos homens alcançar a parusia, e por isso são mostrados ressurretos em ação de evangelização das almas perdidas no livro “The Great Divorce” (ali Lewis chama os ressurretos de “sólidos”). Isto leva à hipótese de que, uma vez solidificados, os perdidos poderão voltar a ferir alguém, estuprar mulheres ou roubar coisas, caindo novamente em pecados corporais. Isto então difere testemunhalmente da teologia da Santa Sé, que aqui adota uma postura de espírito protestante, que diz: “Uma vez salvo, salvo para sempre”. Para Jack, tal coisa não ocorre: a Liberdade é eterna.
Este dado em si é tudo. É o calcanhar de Aquiles e a pedra angular de toda a Teologia, capaz de acabar com toda a discussão ocorrida entre Calvino e Armínio. E nem é de admirar que grandes servos de Deus e grandes teólogos tenham errado neste ponto, pois é uma daquelas “verdades perigosas que o próprio Deus pode ter deixado em oculto” (releia João 16,12), até que a Humanidade tivesse, em sua espiritualidade, amadurecido o suficiente para engolir uma pedra tão dura e tão grossa! Afinal, dizer para pobres vermes que seu próprio destino eterno ficará sempre fragilizado pela insegurança de suas própria decisões, não é coisa que um pai diga para um filho pequeno… Mas é a pura verdade!
Logo, aquilo que podemos chamar de “revelação lewisiana” (a partir da experiência pessoal de Lewis no Vale da Sombra da Morte, pelo livro “The Great Divorce”), deixa toda a história humana no mais alto grau de suspense para o próprio Criador, pois a lei primeira e maior do Livre-arbítrio tornou as criaturas tão inseguras quanto uma turma de cegos no meio de um tiroteio! Pior: deixou o próprio Deus “inseguro”, por assim dizer, pois Ele também não poderá alterar a velha Lei da Liberdade, já que não pode desobedecer a si mesmo. Há um lindo e famoso trecho de Lewis onde ele diz que “Deus aparentemente julgou que valia a pena correr o risco de criar criaturas livres*”. Isto é de cortar coração! É, sem dúvida, o fato mais pungente e mais doloroso de toda a História divina e humana, por seu caráter absolutamente inexorável!
Eis a verdade exposta. Qual a diferença entre o Purgatório de Lewis (não o de Lewis, mas o que Lewis viu com os próprios olhos!) e o da Igreja Católica Romana? É exatamente isto: No Catolicismo romano, a morte sela também o poder de decisão das criaturas, como se a partir dela o Criador assumisse as rédeas das cavalgaduras humanas e ninguém mais pudesse dar um NÃO a Deus, sem qualquer hesitação. Mas o que Lewis viu foi um lugar de total liberdade (liberdade esta encontrada até mesmo DENTRO do Paraíso – lembram dos anões cegos no final do último livro das Crônicas de Nárnia?), com almas chegando até aos jardins multicoloridos do Reino de Deus, e muitas delas voltando para o Abismo, tristes por se julgarem injustiçadas, mas felizes por terem – manterem – a liberdade e o direito de recusar as ofertas de Deus.
Finalmente, agora bateu em mim mesmo uma séria dúvida: para que explicar uma coisa dessas? Para que abrir olhos que fariam muito melhor se continuassem dormindo um doce sonho infantil? O próprio Lewis deixou esta verdade tão sutil que nem mesmo seus leitores mais preparados a descobrem, e ainda pensam que uma história dessas não passa de heresia, acusando seu defensor de um mero louco! E mais: para que mexer numa doutrina que está quieta no Catolicismo e que a Santa Sé já explicou sobejamente para quem quiser conhecer?** Enfim, eu fui longe demais! Afinal, não é de hoje que se sabe que a fé é uma coisa de foro íntimo, e que os segredos que Deus guarda em particular conosco, devem mesmo ficar restritos ao nosso quarto de dormir. Não foi o próprio Salvador quem nos pediu para termos uma vida “secreta” com Ele, seja orando em nosso quarto fechado, seja jejuando ou mesmo dando esmolas? (Mateus 6,2-18). É isso. Pequei por falar.
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(*) O livro “Mere Christianity” (Livro 2, “Em que creem os cristãos”; “A alternativa surpreendente”, parág. 4) diz algo assim, mas Lewis também explorou melhor o assunto noutros livros, em declaração mais direta, cuja memória não nos ajuda agora.
(**) Para quem quiser ver outras ótimas defesas do Purgatório, oferecemos os seguintes links, lembrando que até a Igreja Universal está orando pelos mortos (como você pode ver no último link):
Padre Alex Brito é sábio e de fácil entendimento:
https://www.youtube.com/watch?v=Fej2wClY3xk
Igreja Universal também ora pelos mortos:
https://www.youtube.com/watch?v=7n7SevLxFUc