Na eterna vigilância interior para aprimoramento e autoconhecimento, um cristão não deve omitir-se perante os sinais que Deus lhe enseja no âmago de nossos sonhos, com os quais grandes lições de vida e salvação nos são dadas.
Volto a conversar sobre “sonhos” devido a duas ocorrências insistentes e contraditórias, aparentemente enviadas à minha memória por quem quer uma solução interior para o problema, e eu só posso atribuir a autoria disso ao autor de minha fé, o Senhor Jesus Cristo.
As duas ocorrências são: (1ª) A insistência com que a ideia de um universo sem Deus, o vazio ilógico do ateísmo, chega e bate em minha consciência, como se eu já não tivesse vencido a descrença que a rigor nunca tive [ressalto que esta ocorrência não parece obra de quem quer me fazer ateu, mas de quem quer que eu veja o quanto o ateísmo é ilógico]; (2ª) A insistência com que meus sonhos noturnos se mostram a cada dia mais realísticos, ao ponto de minha consciência está firme no rumo de enxergar um corpo que não tenho, ou melhor, um corpo muito maior que o meu, mais poderoso, mais etéreo e capaz de executar ações impossíveis a um corpo humano comum [lembrando a subida da cascata antigravitacional no último livro das Crônicas de Nárnia]. Pois bem.
Quando a primeira ocorrência chega, como quando chegam cochichos que já conheço bem por não serem de Deus, ela sempre traz um certo mal estar, que sem dúvida deve vir de minha consciência dizendo que eu estou sendo ingrato por duvidar de Deus. Pelo menos é nisso que vou apostar! Não tenho dúvida de que a inexistência de Deus é o maior absurdo do universo, e a persistência desta falácia me espanta por ser uma tentação muito menor que outras, que atingem diretamente um vício que tenho (já quase perdido, graças a Deus!), e que portanto deveriam ser escolhidas com mais frequência pelo tentador e acusador das almas.
É como se você quisesse fazer cair alguém que você sabe ser um alcoólatra e, ao invés de levar-lhe uma garrafa de cachaça, levasse para ele um rodízio de pizza. Enfim, é uma tentação – se é que é – que não entendo ocorrer em mim. Mas talvez eu não me conheça o suficiente… Então vou ficar calado. Pois bem.
Quando a segunda ocorrência chega, não ouço cochicho algum, e já caio direto na situação, geralmente uma cena onde há uma corrida por obstáculos naturais (ruas, muros e prédios) e onde eu não tenho nenhuma dificuldade de escalá-los e até “sobrevoá-los”. Tudo é nítido, aliás, muito mais nítido que os meus olhos abertos conseguem ser, e os muros e os prédios são muito mais concretos e detalhados do que os edifícios que vejo quando saio às ruas durante o dia.
Além de pular fácil por sobre os muros, nunca um poste elétrico foi obstáculo para uma viagem rápida ao topo dos prédios, e nenhum transeunte acha “errado” ou estranho o meu voar-aprendiz, como se eles também voassem e entendessem muito bem que ainda estou aprendendo. Isto me leva a supor, por óbvio, que a prática de voo é uma coisa comum ali naquele mundo, e as pessoas que vejo caminhando nada mais estão fazendo do que dirigir-se a atividades para as quais o voo seria inadequado, como jogar xadrez ou consertar computadores. Eis uma lição literalmente “de passagem”.
Mas a coisa fica mais estranha é quando enfrento uma situação de conflito, e preciso me livrar de alguém ou de um cão raivoso na rua: minhas pernas, sobretudo a perna direita, move-se quase em círculo – e num segundo – tentando atingir o cão ou o intruso, indo muito além do limite dela e ultrapassando a cama onde durmo ou a rede onde adormeci. Numa certa noite, dormindo num quarto menor e mais apertado entre a rede e o guarda-roupas, estava vivenciando um conflito real, quase uma briga de rua, e tive que usar a perna para atingir um agressor, e não creio que o atingi pela rapidez com que ele se esquivou para trás, e só lembro até aqui (não sei se a briga continuou ou parou ali). Mas o que lembro bem foi que ao tentar atingi-lo com a perna direita, chutei pesadamente a porta do guarda-roupas e a rachei, pois o compensado fino não suportou a pancada.
Numa outra ocasião tive medo, pois, como o agressor tentava sequestrar minha mulher, temi chocar-me com ela em meus movimentos adormecidos; e se eu a puxasse com aquela rispidez, ela teria certa dificuldade de entender aquele gesto como um mero pesadelo, dada a lucidez da história que eu iria lhe contar. Temi também dar-lhe experiência tão negativa, conquanto esta poderia suscitar uma desconfiança capaz de deixá-la intranquila no simples ato de dormir ao meu lado. Enfim, eu poderia contar outros exemplos, quase todos com movimentações bem velozes e desobstruídas de todo o meu corpo, e seriam tantos exemplos que talvez perfizessem um livro de sonhos…
Mas então é aqui que me vem a lembrança da palavra de GK Chesterton, quando ele perguntava: “QUEM nunca sentiu que os sonhos se situam NO LIMITE do ser?”… – Ouvindo agora outra vez esta frase de Chesterton, me vem as perguntas: o que queria Chesterton ao perguntar aquilo? O que ele teria visto de si mesmo nos sonhos dele? O que ele descobriu acerca da ontologia humana que valesse a pena explicar para enriquecer o que o Evangelho contou apenas de passagem a nosso respeito? Enfim, uma chuva de perguntas podem nascer da pergunta feita por aquele escritor genial!
Mas é a questão do LIMITE DO SER que deve suscitar em nós toda a reflexão desta vida. Vou tentar iniciar um arrazoado agora, numa tentativa de resposta ao gênio e certamente na loucura de tentar exprimir o inexprimível.
Em primeiro lugar, nos cabe a pergunta: “o ‘EM SER’ um ser humano envolve algum limite ontológico? Isto é, nosso ser é limitado ou ‘ilimitado’? (Não no sentido físico químico, mas no sentido transcendente). Nossa limitação, em tese, não seria apenas uma circunstância temporária de nosso forçado ajustamento aos limites tridimensionais de nosso universo material? Ou seja: quando a morte chegar, não irá ela nos catapultar para o ‘ilimitado ilimitante’?”… Creio que a resposta para todas essas questões é 51% SIM e 49% NÃO. Porquanto Deus nos limitou como seres viventes enquanto existência finita em dimensão, mas eterna no tempo e onipresente no futuro. Noutras palavras, enquanto seres criados na escala ontológica da Criação, temos o nosso “tamanho” (melhor dizer “nossa incidência ontológica”) circunstanciado às etapas da evolução multidimensional planejada por Deus, com a qual TODOS os seres criados caminham para a PERFEIÇÃO, e com a qual ocupam cada vez mais espaço ou ampliam paulatinamente a sua incidência.
Em segundo lugar, cada etapa desta longa caminhada [cada uma realizada numa realidade diferente, por assim dizer, em uma sequência: pensamento / éter / magnetismo / fogo / água / terra / corpo-matéria / corpo-fluídico ou fantásmico / solidificação / ressurreição / transublimação / trancendencialização e finalmente perfeição incompleta (se é incompleta, é porque continuará para sempre, pois completa mesmo só Deus pode ser)] constituirá o indivíduo em si, e ele jamais deixará de ser a mesma alma, embora com inúmeras incidências de sua pessoa nas diversas dimensões da Criação. Eis ai uma tradução da Eternidade ou da ontologia eterna do Amor de Deus.
É claro que a lista acima, exposta numa “metalinguagem” mistagógica, jamais irá facilitar o nosso entendimento de todo o processo, pois, além de ainda estarmos dentro dele (talvez bem no comecinho dele, como “crianças cósmicas”), nossa própria mente ainda carece de inúmeros atributos de poder que Adão um dia teve e que um dia recuperou, quando saiu triunfante de sua etapa purificadora, o período pedagógico no “Vale da Sombra da Morte”, ao qual a Igreja chamou de “purgação no Purgatório”.
Entretanto nossa mente, mesmo abandonada à própria sorte de uma vida de pecados, ainda guarda seus atributos ‘pétreos’ estruturais (parece que até o corpo físico também guarda alguns atributos transcendentais, os quais vez por outra aparecem em necrotérios – veja AQUI), aqueles que são indestrutíveis na essência do ser, e os quais formaram, formam e formarão aquele único indivíduo, o eu-X, que irá emergir no Paraíso ao final de todas as etapas, junto com todos os outros eus (o Y, o Z, o Zé, etc.). E mais: o ser de cada indivíduo humano do planeta Terra, circunstanciado pelo pecado de Adão, e guardando sua ontologia eterna, jamais pôde esquivar-se de travar algum contato com os limites de seu ser, e é aqui que entram os sonhos ou o papel do sonhar lúcido, que deixa o sonhador VER – com melhores olhos – até onde alcança a sua ontologia ainda humana, à espera de sua “transubstanciação”, i.e., sua solidificação final ou sua ressurreição, no processo geral da trancendencialização desejada por Deus.
Por último, reconhecer que “algo dentro de nós vai muito além de nós mesmos”, e que nossa alma é muito mais complexa do que podemos supor por nosso corpo, sendo este também muito maior do que aponta a nossa estatura física, pode ser a condição “incidencial” de nossa próxima etapa, a qual se deixa entrever em nossos sonhos, reforçando a fé em Deus e a nossa autoconfiança. Na eterna vigilância interior para seu aprimoramento e autoconhecimento, o cristão deve alegrar-se (outra vez digo alegrar-se) sempre perante este sinal maravilhoso que Deus enseja em nossos sonhos, com os quais visitamos toda a Alegria de ser aquilo que somos.