Numa explicação completamente equivocada, o Protestantismo afunda na sua própria inconsistência, criando “um obstáculo para a Onipotência” e dividindo ao meio toda a Cristandade.
Quando o assunto é escatologia e nosso interlocutor é um cristão “egresso da Reforma”, invariavelmente está proibida uma conversa sobre salvação após a morte, e assim qualquer trecho bíblico chamado para ajudar será interpretado como má interpretação de nossa parte, e sempre com o velho argumento de que estamos extraindo o texto do contexto e vice-versa. A estupidez é tanta que ele nem se lembra de que as asseverações de sua denominação, conquanto forjadas na boa intenção de salvar almas, também são produto de interpretações particulares, igualmente temerárias.
Porém o que há de incongruente ou biblicamente incoerente na afirmação de que Jesus também salva os mortos? Uma simples observação mais cuidadosa facilmente constatará que Jesus é salvação em qualquer lugar, e que as mesmas regras dadas para salvar homens de carne e osso, servem direitinho para alcançar almas desencarnadas (até porque a salvação anunciada aos vivos se dirige às almas, e não aos corpos!).
Aliás, a inesgotável descoberta de referências bíblicas acerca do tema da salvação post mortem apontam justamente para o fato de que, se há um assunto que as Escrituras mais apontaram e mais abundantemente expuseram, foi justamente a universalidade do plano de resgate ou a amplitude do raio de ação do amor salvífico de Deus. Na verdade, qualquer tentativa de bitolar ou limitar o alcance da Graça Salvífica deve ser encarada como uma obra de satanás, a quem interessa ocultar a verdade que lhe combate diretamente e desmorona seus planos.
Por tudo isso, a expressão direta de São Pedro (“pois para isso foi o evangelho pregado também aos mortos”) é a mais perfeita síntese de toda a soteriologia bíblica, e as demais indicações nem precisariam “descer” a termos mais populares, já que o povo judeu nunca teve qualquer dificuldade de identificar vivos e mortos, e, pelo contrário, sabiam perfeitamente o que são os vivos e os fantasmas, ao ponto de confundirem Jesus com um deles em várias ocasiões (e nestas, não recebendo de Cristo nenhuma reprimenda que os desestimulasse a crença em almas desencarnadas, como explicou CS Lewis), como na caminhada sobre as águas.
As Escrituras falaram em “Cristo ir pregar aos espíritos em prisão” (I Pe 3,18-19) – e não adianta pensar que o trecho se refere apenas à Humanidade pré-diluviana, porque o tempo que vigora após a morte é o Kairos, ou tempo de Deus, e ali existe apenas um presente eterno, como explicou Lewis quando falou sobre Apocalipse 13,8). Depois as Escrituras falaram também sobre a forma como Deus vê os seres (humanos), “porque para Ele todos vivem” (Lc 20,38); contaram também uma estranha história acerca de “um povo que andava em trevas e viu grande luz, e ao povo que andava no Vale da Sombra da Morte resplandeceu-lhes a luz” (Is 9,2); um grande servo de Deus, falando de algo como uma experiência pessoal antecipada, chegou a dizer acerca daquele lugar tenebroso que “ainda que ele andasse pelo Vale da Sombra da Morte, não temeria mal nenhum, porque Deus estaria com ele” (Sl 23,4); o próprio Cristo um dia disse que “aquele que crê em mim, ainda que esteja morto viverá” (Jo 11,25); Paulo contou com convicção que nem mesmo o abismo pode nos separar do amor de Cristo (Rm 8,38-39), pois é Jesus que guarda as chaves da morte o do inferno (Ap 1,18) e Ele poderá abri-la a qualquer momento; aliás, o Velho Testamento diz até que “as portas do abismo estão escancaradas diante de Deus”; e Pedro explicou “porque para este fim foi o Evangelho pregado também aos mortos” (I Pe 4,5-6); etc., etc., num corolário de citações auspiciosas e sintomáticas sobre a verdade de Deus do outro lado, matéria própria da Escatologia cristã.
Entretanto o texto mais explicativo e direto acerca do assunto é aquele que serviu de inspiração para o título deste artigo, a parábola do rico e do pobre (Lc 16,19-31). Ali naquela pérola de ensinamento o Senhor expõe uma experiência que só Ele poderia descrever por experiência própria, e confeitá-la com figuras que alcançassem, de modo mais prático, o pífio entendimento do povo iletrado da época. Então Jesus contou que dois homens morreram e foram cada um para o seu próprio caminho, antecipadamente escolhido na terra. Um deles escolheu um caminho que noutra ocasião o Nazareno chamou de loucura (Lc 12,20) e desceu ao mais fundo de sua perdição; e o outro escolheu o caminho ascendente de Deus, que levava ao paraíso prometido. Num plausível diálogo entre os dois (como CS Lewis teve com George MacDonald), houve uma conversa terrivelmente frustrante para o homem rico, que ao final ouviu a bofetada de Lázaro sobre a descrença de seus familiares tão descrentes quanto São Tomé: “ainda que um morto ressuscitasse, eles jamais iriam crer”.
E aí chegamos à nossa questão teológica. No versículo 26, Jesus introduz a figura física e tridimensional de um abismo como forma de alarmar a perigosa situação de quem voluntariamente se separou de Deus, por preferir a vida “independente e moralmente livre” do que a dependência do Pai, parafraseando o diabo que um dia disse “prefiro ser rei no inferno que escravo no céu”. Todavia o ABISMO que aparece na parábola do Rico e de Lázaro (e também na desculpa dos protestantes para escamotear a Revelação de uma salvação post mortem), é completamente ilógico para com a coerência interna do Evangelho. Um abismo (abissal) é sempre o lugar mais baixo ou mais profundo na geografia e na estrutura de um planeta. Da mesma forma, o inferno é também, por definição, o lugar mais profundo na topografia do pensamento e na engenharia da criação, e por isso colocar um abismo entre o inferno e o Céu é uma tosca incongruência lógica, pois nada poderia estar abaixo do inferno, e assim o abismo só pode ser o próprio inferno. Se o abismo é o inferno, então aventar a hipótese de que não se pode passar do inferno para o Céu PORQUE HÁ UM ABISMO ENTRE ELES, é o mesmo que dizer que não se pode sair do inferno para o Céu porque há um inferno entre eles! Ora, assim sendo, então este segundo inferno só pode ser subjetivo, interior ou psicológico, e é exatamente isto que Isaías diz quando explica o PORQUÊ do aparente “abandono” de Deus aos pecadores. Como nós já vimos aqui, Isaías diz que o abismo é interior, quando explica que “os vossos pecados fazem SEPARAÇÃO (divórcio, abismo) entre vós e o vosso Deus e escondem o seu rosto de vós”.
Finalmente, está claro a impossibilidade de qualquer obstáculo impedir a entrada de Deus em qualquer lugar, e por isso o Amor Infinito vai buscar a centésima ovelha no mais longínquo abismo, sem qualquer impedimento lógico e muito menos físico. Pensar que um simples abismo topográfico separaria Deus de uma alma é uma tremenda idiotice, sobretudo se a alma perdida se arrepender e clamar ao Senhor dos altos céus. Porém, cuidado, pois será impossível a Deus salvar uma alma que voluntariamente quis perder-se no Hades… Ocasião em que terá criado, entre ela e Deus, o único abismo intransponível, ou seja, o Grande Divórcio.
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NOTAS FINAIS:
– Toda a matéria aqui tratada é discutida amplamente no livro “O Grande Divórcio do Egocentrismo”, que o professor desta Escola, o teólogo João Valente de Miranda L. Neto, escreveu com o apoio desta instituição de ensino e das editoras Agbook e Clube de Autores. Para chegar ao livro, basta digitar seu título no Google.
– O StudioJVS publicou um pequeno vídeo sobre o assunto. Veja NESTE link.
2 respostas a O abismo absurdo da resposta protestante