A Cristandade sempre lutou por defender que a Bíblia é a palavra de Deus e todos creem nisso. Por isso podemos estar na hora certa para, a partir da extraordinária ideia de Simone Weil, investigar até onde o contrário é verdadeiro.
Uma aposta “infernal” seria: “E se jamais tivesse chegado ao mundo qualquer palavra de Deus, no sentido de uma instrução inteligível e confiável do próprio Criador? E se aquilo que a Humanidade inteira chama de Palavra de Deus não passasse de um amontoado de conversas mais ou menos úteis travadas entre pessoas ao longo das gerações?”… Esta é uma aposta viável? Este raciocínio pode ser feito, ou melhor, poderia ser válido? (aqui falando como falam os ateus ou fazendo de conta que somos céticos). E vamos tentar esmiuçar isto com um linguajar o mais simples possível, dada a intrincada rede de sentidos que se aproximam ou se afastam do tema para atrapalhar a compreensão de quem se dispuser a apreendê-lo.
Deus é Comunicação, no sentido mais profundo do termo. Ele é a própria Comunicação Viva, e algo que se comunica com perfeição não precisa, a rigor, de nenhum instrumento exterior para se fazer conhecer. Ele é Comunicação de tal modo que se pode dizer que a Comunicação é Deus, e que ela nasceu antes dele (por assim dizer) porque o próprio ato de existir é um ato de Comunicação. Sendo então a perfeição absoluta na arte de se comunicar, pode-se dizer que até um espirro ou um rosnado de Deus seria inteligível, caso o ouvinte também fosse perfeito, porque um ouvinte perfeito nem precisa ouvir nada para entender. Nem mesmo uma voz telepática seria necessária, pois a comunicação seria tão perfeita que aquilo que foi pensado é exatamente aquilo que foi ouvido no ouvido interior, e por isso o emitente e o ouvinte seriam como uma só pessoa, e é por isso que Deus é uma Trindade: nada há que um pense que já não tenha sido pensado pelo outro e vice-versa, e neste ambiente ultra e multicomunicativo, o próprio VIVER é Comunicação, comunicação de idéias, sentimentos e vontades, e o contrário também é verdadeiro.
Um livro para Deus ler seria inútil, sobretudo se fosse para Deus-pai ler para Deus-filho e vice-versa, assim como seria uma tremenda idiotice a leitura dEle para o seu Espírito Santo. Mas ainda estamos no ambiente de Deus, na Grande Dança da Santíssima Trindade, e por isso o nosso raciocínio resultaria sem serventia se não o aplicássemos a outros ambientes, ou se não o empreendêssemos para outros ouvintes, reduzindo a escala de valor ontológico para entender o argumento deste artigo, i.e, a virtual ausência de uma palavra de Deus no mundo.
Vimos que entre Deus-pai e Deus-filho um livro seria inútil. E entre Deus e os anjos?… Provavelmente também, pois os anjos têm poder telepático, e seu pensar é ouvido por Deus e, se Deus quiser, Seu pensar também lhes é audível na mente. Mas entre Deus e os homens? Um livro aqui seria útil? Certamente SIM, até onde vai a ignorância humana e a surdez voluntária da Humanidade. Mas provavelmente há um sentido em que um livro de Deus na terra também seria inútil.
Ou seja: Deus não iria escrever um livro, da mesma forma como Jesus jamais escreveu um (aliás, este fato em si já é bastante sintomático, e diz tudo, pois se um livro fosse tão útil, e sabendo escrever e comunicar melhor do que qualquer escriba humano, Jesus mesmo teria gasto boa parte de seu “tempo perdido” – dos 12 aos 30 anos – e suas “horas livres” escrevendo, e não orando, até porque sua palavra escrita também seria oração, tal como suas orações faladas são textos áureos para nós). Todavia o sentido mais preciso de inutilidade de um livro de Deus está relacionado à super-comunicabilidade de Deus e a falibilidade de qualquer comunicação humana. Pergunte-se:
Por que cargas d’água a Comunicação Infinita precisaria de um instrumento intermediário tão precário, feito de matéria tão reles quanto papel, para alcançar os corações humanos? Não é muito mais lógico supor que a comunicabilidade de Deus é tão autocomunicante e tão auto-explicativa que dispensa qualquer dependência de instrumentos? Aliás, afinal, não é a própria Bíblia que, de modo tão sutil, diz que Deus “colocou a eternidade no coração do Homem”? Não foi São Paulo quem disse que, antes da Revelação se fazer em Cristo, as almas eram salvas pela lei viva que lhes ditava a consciência sem lei? Outrossim, se não existe nenhum lugar no universo onde o Homem poderia se esconder de Deus (isto diz “toscamente” o Salmo 139), e se Jesus vai pregar de viva voz e pessoalmente aos que jazem na prisão do Hades (isto diz “casualmente” Pedro em I Pe 3:18-19 e 4:6), sabendo que sua própria pregação seria muito mais eficiente do que a de quaisquer escribas e crentes, então PARA QUÊ haveria necessidade de um livro tão “confuso” quanto uma coletânea de escritos assimétricos e separados no tempo e no espaço em sentido e prática?
Porquanto as Escrituras Sagradas são isto mesmo, ou seja, uma coletânea de escritos assimétricos e separados no tempo e no espaço, teórica e praticamente, incapaz de resolver os ingentes problemas causados pela deficiência intrínseca da linguagem e da mente humana, e servindo até para proliferar interpretações proselitistas e ensejar discórdias e divisões, mesmo entre aqueles que, de boa vontade, venceram todas as outras dificuldades da caminhada religiosa de “re-ligação” com o Criador.
Logo, o mais provável é que a Bíblia seja somente isto, ou seja, um amontoado de ossos secos por onde Deus fez reaparecer a vida, ou um monturo de expressões das quais alguém poderia deduzir a remota autoria da divindade Supercomunicativa, se e somente se tivesse a chave da interpretação perfeita que só Deus tem, já que no nível humano mente alguma seria capaz de apreendê-LO.
Com efeito, dizer que “não existe palavra de Deus no mundo” significa, no sentido mais profundo, que Deus confiou tanto no seu próprio poder de comunicação (Ele É Comunicação em si) que, mesmo se os homens tivessem escrito um amontoado de sandices (e depois chamado este amontoado de Bíblia), ainda assim a divina vontade transpareceria no meio das sandices e as almas O encontrariam de qualquer maneira. E se jamais o amontoado tivesse sido compilado e canonizado, a Verdade salvadora mesmo assim chegaria aos corações, pois tanto o Senhor procura pelos tais, quanto os tais seguem “sonambulamente” para o Senhor, tal como peixinhos seguem inexoravelmente para o lago na correnteza descendente de um açude. É isso.
Portanto, eis que neste mundo tanto podemos pensar que existe um livro onde a Palavra de Deus subsiste (apesar de todas as dificuldades e bloqueios à sua compreensão) porque QUALQUER COISA pode comunicar Deus; quanto podemos pensar que neste planeta não existe livro algum que contenha a Palavra de Deus, justamente porque nada que seja humano PODE COMUNICAR O INFINITO sem desintegrá-lo em seu sentido profundo, reduzindo-O até torná-LO ininteligível.
Finalmente, uma poesia divina transparece ao longo destas linhas (aliás, dizem os entendidos e também CS Lewis, “só a poesia pode entender e traduzir o infinito”), e ela deixa a única luz no fim do túnel da cegueira total da Terra. Acompanhe a luz agora: quando a Bíblia declarou “minha palavra não voltará vazia e fará aquilo para a qual foi determinada”, aquilo na verdade significava e equivalia a dizer “no vazio da palavra ela não voltará para mim sem fazer aquilo para a qual Eu a determinei”… – É por isso que embora NADA neste mundo seja intrinsecamente Palavra de Deus, TUDO é Palavra de Deus, e até onde o nada se insinua, ali ouvimos Deus.