O fato de Jesus jamais ter escrito um Evangelho ou qualquer outro texto bíblico mostra que o Salvador tinha como certa e decisiva a missão dEle após a morte, a saber, buscar as almas no Hades…
Toda a massa humana que trava contato com as Escrituras Sagradas do Cristianismo e a maioria que realmente estuda e conhece a Bíblia sabe, com prova incontestável e até óbvia, que Jesus jamais escreveu qualquer livro do Novo Testamento, e que neste tudo o que foi escrito vem de autores seus seguidores ou seguidores dos primeiros discípulos, formando assim o que se entende por uma mensagem viva de Deus para a salvação da Humanidade.
Entretanto, o que poucos se dão ao trabalho de observar é que, além de não ter escrito nada, Jesus também, talvez movido por sua humildade infinita, não pareceu tão preocupado assim com algum registro por escrito de sua passagem pela terra, carreando sua atenção rigorosa para as páginas do Velho Testamento, livro que seguiu à risca e exemplarmente. Outrossim, pode-se pensar também que Jesus nem chegou a incomodar-se com as partes de sua vida e de suas palavras que possivelmente poderiam ser registradas por escrito, uma vez que durante pelo menos 30 (trinta) anos após a sua ascensão, as almas ditas ‘perdidas’ ouviriam de seus seguidores a palavra viva de viva voz, naquilo que ficou conhecido como “Tradição Oral”. Este fato, e mais a confiança irrestrita de que nenhum de seus fiéis – alguns até que foram testemunhas oculares – iriam maquinar distorções ou contar mentiras a seu respeito, levou Jesus a caminhar tranquilo em sua Missão, convencido de que jamais a Palavra de Deus voltaria vazia e não cumpriria seus mais sublimes propósitos (Is 55,11).
Isto posto, e além da primazia do Velho Testamento sobre a consciência dos discípulos (a maioria de origem judaica, encontrando no VT todas as “fórmulas” da salvação) que os faria pregá-lo com toda fidelidade, foi o próprio Jesus quem lhes dissera, repetidas vezes, que “aquele que ama a seu próximo tem cumprido a Lei” (Rm 13,8) e que para a salvação bastaria cumprir o Novo Mandamento, a saber, o amor ao próximo (João 14,21 e Mt 19,17), “mera” repetição do livro do Êxodo. Ora, ali estava posto toda a logística da missão dos discípulos, e eles também não se preocuparam muito com um registro escrito das palavras de Jesus, não apenas por saber que a salvação estava no amor ao próximo (o próximo também é Jesus), mas porque a correria e as perseguições daqueles dias os impossibilitavam de sentar e escrever longos textos, até pela dificuldade de um tempo sem qualquer tecnologia de comunicação. Então e por óbvio, foi somente quando a maioria deles chegou à maturidade ou à velhice, e conseguiram lembrar o quanto a Humanidade é esquecida das coisas, que decidiram botar a mão na massa, aliás, na tinta de pena, e rabiscar papiros e rolos “para desencargo de consciência” [desencargo porque, uma vez convencidos de que a salvação independia da LEITURA das memórias deles, e crendo que o Espírito Santo os faria lembrar de todas as coisas (João 14,26), seria uma indelicadeza e até certa ingratidão não deixar nada escrito, como homenagem e até louvor a quem lhes deu tamanha salvação].
[Dada a quantidade de detalhes cruciais, o parágrafo anterior dele ser relido com mais atenção].
Inobstante e contudo, o fato estava posto: se Jesus nunca escreveu nada do que falou para ajudar à crença e à missão de seus seguidores, então era óbvio que o centro ou a essência da salvação não estava na leitura de um suposto Novo Testamento (até então, uma afronta aos judeus do VT). I.e., que a salvação só podia ser algo ligado apriorística e preponderantemente a uma missão do próprio Deus, e assim a sua realização se daria numa obra de esforço pessoal do Criador, que iria operar todo o milagre de resgatar as almas nesta e na outra vida, independente de terem os homens registrado por escrito qualquer instrução de desvio do perigo sobre a superfície da terra.
Estava iluminado o mistério e o milagre: a salvação não precisaria necessariamente da pífia ajuda dos homens (Is 64,6)… no que, se aquela dependesse destes, talvez Deus amargasse uma performance irrisória no “ranking” das almas libertas da prisão do pecado, dentro da qual os próprios discípulos se encontravam (Rm 7,15-20). Afinal, foram eles mesmos que entenderam que era o próprio Deus quem operava “o grosso” da obra salvífica, não apenas com intercessões providenciais (Rm 8,26), mas também até como advogado protetor, do tipo que concede habeas corpus, mas apenas para quem pecasse com arrependimento genuíno! (I João 2,1).
E mais: viram também que, uma vez que o Juízo Final não se daria tão cedo, e que só após aquele julgamento as almas ‘perdidas’ ficariam perdidas mesmo, todos os que morressem ANTES do Juízo não ficariam no Inferno propriamente dito, já que teriam que se apresentar posteriormente ao Grande Tribunal de Cristo (II Co 5,10). Logo, sabiam que se alguém morresse “sem” Jesus (por assim dizer), não estaria hoje mesmo no Paraíso (Lc 23,43) e ficaria à espera de resgate, se aceitasse Jesus em uma pregação diretamente feita à sua alma, perdida na escuridão do Hades, como acreditava piamente Pedro (I Pe 3,18-19 e 4,5-6). [Releia o parágrafo conferindo as citações bíblicas].
Assim, não demorou para que todos compreendessem que, seja qual fosse a vida de cada um na Terra, e seja qual fosse o esforço que fizessem para se salvar e salvar almas, a guerra propriamente dita contra o pecado não acabaria após a morte, e ficaria na dependência de existir um Deus onipotente e misericordioso, que se dignasse a descer ao mais profundo dos abismos (Sl 139,7-8) e lá pregasse outra vez às almas, como um pai amorosíssimo faria. O resto, i.e., o arrependimento necessário em vista de sua vida exposta a nu, agora dependeria tão somente das almas na escuridão, as quais poderiam, pelo medo e pela solidão, encaminhar-se àquela inefável luz que aparecia por ali (quando os olhos podiam ver), descendo de um céu enfumaçado e estranho, sem estrelas e sem vento.
Está explicado: o “silêncio redacional” de Jesus se explica direitinho pela gigantesca e decisiva proeminência da Sua santa missão no Hades, a qual influenciou decisivamente a vida dos discípulos; os quais puderam, não apenas pregar “mais tranqüilos”, mas confiar cegamente naquela missão divina e no reencontro com todos aqueles que, embora em vida não tivessem dado sinais de arrependimento, poderiam fazê-lo após a morte, num ambiente até certo ponto mais propenso (sem as tentações da carne), dada a terrível angústia da solidão e do silêncio sepulcral que domina o Vale da Sombra da Morte, a empurrá-los para a única fresta de luz ali visível.
Que isto não sirva de escape para aquele mau caráter que pensa em pecar à vontade na Terra e se arrepender depois, porque cada pecado gera seu vício respectivo (João 8,34), e este é, a cada queda, mais difícil de ser dominado, como C.S. Lewis explicou em “Cristianismo Autêntico”, Livro 3, ‘Comportamento Cristão’, “Moral e Psicanálise”, parágrafo 10, com as seguintes palavras: “Um homem pode estar numa posição tal que a sua fúria cause o derramamento de sangue de milhões; e outro, por mais que se enfureça, consegue apenas que riam dele. Mas a pequena marca na alma pode ser a mesma em ambos. Os dois fizeram algo a si mesmos que (a não ser que se arrependam), tornará mais difícil o domínio da ira na próxima vez em que forem tentados, e fará com que a ira seja pior quando nela caírem”. Eis aí a lição maior. Que nossos olhos vejam e nossos ouvidos ouçam bem.