A Razão Última do Ateísmo (Revisão)

Recolocando os fundamentos do artigo “Eureca: Descoberta a razão última do ateísmo”, uma releitura mais direta poderia chegar em boa hora para um mundo em flagrante deterioração.

Algum tempo atrás escrevemos um artigo dentro da perspectiva desta era da descrença, até sem levar em conta os evidentes sinais de um reavivamento da religiosidade popular, demonstrado na avassaladora afluência aos cultos neo-pentecostais e movimentos carismáticos, bem sucedidos tanto no meio protestante quanto católico. O artigo em questão deve ser lido NESTE link.

O que nos vem chamar agora a uma revisão, ou antes, a uma ampliação do argumento, é a evidência cada vez mais forte de que a falta de fé em Deus tem como maior propulsora uma outra descrença, a saber, a unânime desconfiança de que ninguém cumpre a moral cristã, e por isso não há razão alguma para confiar na interpretação bíblica. Com a missão de ensinar o comportamento correto à Humanidade arrasada com o mau testemunho ético de seus próprios intérpretes, tanto a moralidade perdeu prestígio quanto a sua filha imediata, a hermenêutica, a qual depende do bom caráter de seus agentes para evitar manipulações e outras tramas proselitistas frequentes no meio religioso.

Assim, e evidentemente, “As bases da crença foram abaladas em todos os sentidos, por causa do binômio MORAL versus INTERPRETAÇÃO”, sem que nada possa remar contra esta corrente bem firmada na lógica da depravação total da Humanidade. Apenas a volta concreta de Cristo ao mundo poderá reverter este quadro ou dar-lhe novos matizes, não sendo irracional supor que mesmo ali, como parte da profecia apocalíptica, ainda subsistirá o ceticismo no coração dos Homens, inclusive de cristãos, como explicou o apóstolo São Mateus quando falava da sedução do antiCristo (Mt 24,22-24). Porquanto e a rigor, ver com os próprios olhos o Senhor Ressurreto descendo do meio das nuvens não é garantia de crença, como disse CS Lewis, que aceitou de bom coração a ideia de que qualquer coisa diante dos olhos poderá ser encarada como “ilusão”, e assim cair de volta no velho drama dos parentes do homem rico, que pediu a Lázaro a ressurreição de um morto para que eles cressem, e Lázaro respondeu que ainda que um morto ressuscitasse, eles não o creriam de modo nenhum (Lucas 16,27-31).

Raciocinemos então, sobre isto, do seguinte modo, com base em “postulados práticos” do ceticismo registrado na estatística moderna:

1 – A Humanidade decaída detesta direcionamentos morais ao seu proceder, e isto é suficiente para se abandonar ao lixo quaisquer regras que supostamente tolhem liberdades. Temendo perder prazeres imediatos e concretos, a alma que nem mais crê que exista julga ter apenas uma opção para ser feliz, a saber, agarrar-se às sensações físicas de prazer e bem-estar, até que a morte a separe de tudo.

2 – A vontade de Deus foi explicitada em um livro, e livros dependem de interpretações. Como a interpretação é aparentemente tolhedora das liberdades sexuais, não há razão alguma para dar ouvidos àquilo que certamente impedirá o gozo único da vida, sem o qual a depressão e a morte chamam sem piedade (a vida passou a significar apenas “comamos e bebamos, pois amanhã nada mais existirá”).

3 – Os próprios “intérpretes” da Palavra de Deus também caíram na tentação, e por isso não têm moral para apresentar códigos de ética para ninguém, e assim a Humanidade marcha sem rumo como cegos guiando cegos e como vadios chamando bacantes para curtir a única coisa que faz a vida valer a pena. Se os intérpretes caíram, quem são eles para impor moralidades aos outros?

4 – O “suposto” Deus-cristão jamais deixou qualquer prova concreta de sua existência e mesmo de sua passagem pela Terra (muitos de seus seguidores até dizem que isto foi feito de propósito), o que apenas reforça a falsa impressão de que o ateísmo é, afinal, a mais dura e frustrante realidade, e por isso curtir a vida deve ser uma regra sem qualquer compromisso com o mal ou com o bem, pois nenhum dos dois significa nada além de mero ponto de vista pessoal.

Diante destes quatro pontos, como não compreender a descrença geral na qual mergulhou toda a Pós-modernidade? A velha e benfazeja fé, que felicitou milhões de gerações passadas, chegou ao ponto em que não pode mais avançar sem um escancaramento de seu objeto maior; mas este escancaramento pressupõe uma adesão ao bem aparentemente oculto neste planeta, e esta adesão não pode ser outra senão uma que contemple a moralidade, condição sine qua para o olho humano enxergar a santidade suprema.

Finalmente, a Humanidade pode esperar uma interferência direta de Deus para atender às exigências de prova dos ateus? Por um dado, a resposta é absolutamente NÃO, pois o Senhor nunca deu nem dará o braço a torcer a quem não confia nEle. Por outro lado, Deus interferirá sim, e deve ser para breve! Porém jamais o será por causa da descrença, uma vez que ela está atrelada à livre vontade de não seguir a Moral cristã, ferida de morte pelo mau testemunho daqueles que deveriam servir de espelhos de Cristo para o mundo. Rejeitar o bem que deveria ser cumprido à risca e optar por uma vida edonista é a razão da atitude evasiva de Deus, e não uma suposta ofensa dEle pela desconfiança de corações tão fracos quanto o nosso.

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Só Deus poderia ser tão claro

Lendo os principais livros de CS Lewis, não se pode concluir outra coisa senão que seu autor intelectual foi Deus, pois cego algum poderia iluminar tanto o caminho para uma Humanidade cega (Mateus 23,24 e João 9,39-41)

Nem precisaremos escolher livros a comentar, e nem precisaremos de outro livro que não seja aquele que chamamos desde cedo de “Livro-1”, o qual teve diversos nomes em várias edições brasileiras. Trata-se da extraordinária obra “Cristianismo puro e simples”, que já foi chamada de “Cristianismo Autêntico” e “A Razão do Cristianismo” (sempre defendemos que este é o melhor título para a obra-prima de Lewis).

Mas não devemos falar nele de imediato. Façamos uma parábola ou raciocínio hipotético antes de entrar no argumento. Suponhamos que recebemos a incumbência de explicar para alguém que jamais fez um curso de motores (e nunca quis saber de nada sobre o funcionamento de seu carro) tudo acerca da fisiologia dos automóveis e do ato de locomoção de uma máquina sobre rodas para transporte de humanos. Suponhamos também que o carro seja bem moderno, desses que usam computadores de bordo.

Ora. Um técnico que conheça bem o motor em questão terá profundas dificuldades em se fazer entender por um proprietário leigo em sua oficina, bem como com um aluno de um curso técnico de motores que pela primeira vez vê todas as engrenagens abertas e ao vivo. As dificuldades não seriam apenas oriundas da enorme quantidade de peças, fios e circuitos, mas até mesmo pelo entendimento da “filosofia do motor”, ou a ideia através da qual seu inventor achou por bem de fazê-lo funcionar, de um certo modo e não de outro, usando certas máquinas e não outras. Muitas vezes até o aprendizado da filosofia é necessário antes mesmo da visão ao vivo do motor, tal como um novo funcionário precisa conhecer, antes de suas tarefas diárias, a missão e a visão de futuro da empresa pela qual acabou de ser contratado.

No curso teórico, pois, o instrutor vai falar do modus operandi do carro depois de montado, comprado e em circulação pela cidade. Vai dizer que é um carro utilitário (uma “station wagon” ou ‘pickup’), que pode carregar muito peso, além de ter espaço folgado para 9 pessoas. Vai dizer que a ideia de seu caráter utilitário nasceu da vontade da população de ter uma caminhonete confortável, que também fosse elegante e “feminina”, capaz de atender aos mais diversos gostos dos moradores do interior. Por fim, dirá que será muito útil ler todo o Manual do Proprietário para as dúvidas mais comuns no uso do veículo, evitando idas à oficina por problemas facilmente resolvíveis em casa.

Pois bem. O mesmo ocorre com a máquina humana e sua filosofia de operação. No estado em que se encontra hoje, qualquer alma nascida na Terra precisará de um “reparo” ou “evolução tecnológica” para vencer as dificuldades que a natureza impõe aos corpos desprotegidos (pelo mau uso ou desuso de poderes supranaturais, que o Homem perdeu justamente pelo risco de praticar o abuso deles). O problema é que tal reparo ou evolução exige o conhecimento daquela filosofia, e esta não é uma coisa “simples”, que se possa resolver em 5 minutos de conversa, ou por assistir um vídeo de uma hora ou pela leitura de um livro de 300 páginas!

Pelo contrário, após a cegueira mental que se iniciou após a Queda do Homem, a bagagem de conhecimento necessária foi se expandindo centuplicadamente, a ponto de hoje em dia já está além de Plutão a pilha de livros sobrepostos para explicar tudo, o que tornou humanamente impraticável o resgate pelo aprendizado da conscientização ou pela conscientização do aprendizado. Como, então, Deus resolveria o drama do resgate humano, já que nem a vinda dEle à Terra poderia dispensar a via do conhecimento transcendental? – Tudo indica que restaram a Deus duas opções.

A primeira era deixar uma mensagem no mundo que pudesse fazer as pessoas se amarem com o amor gratuito com que Ele nos amou, e para isso era bom desidolatrar o amor consanguíneo e elevar o valor do amor comunitário, e isto só seria possível por uma comunidade que se reunisse em seu nome (a Igreja). Todavia, nem mesmo esta seria suficiente para dar conta de todo o conhecimento necessário à reintegração mental e espiritual das almas decaídas, e por isso a Bíblia registrou que “há muito mais coisas que Jesus fez, e se fôssemos aprender tudo isso nem no mundo inteiro caberiam os livros”.

Ora; se a Igreja não daria conta do recado (um recadão de milhões de livros) e se a própria Bíblia seria insuficiente, fica óbvio que Deus suscitaria alguém que, após longos anos de evolução tecnológica e cultural, trouxesse toda a luz à Revelação do Novo Testamento. Porém isso foi tentado um milhão de vezes na História e até ontem ninguém teria sido capaz de ir além do Novo Testamento, ou mesmo equiparando-o em precisão e profundidade. Entretanto isso mudou, a partir de 29 de Novembro de 1898.

Naquela data Deus suscitou um profeta de nenhum nome significativo, pelo contrário, era mais um pobre Zé-ninguém imiscuído num subúrbio da Irlanda, sem que nada indicasse vir a ser aquele menino o divisor de águas na História da Revelação de Deus. Em resumo, o menino cresceu e se tornou o responsável pela iluminação mais clara das Escrituras Sagradas, permitindo que qualquer alma agora pudesse vislumbrar tudo o que lhe dizia respeito em sua “religação” com Deus e com o universo em que vivemos, tornando a Bíblia finalmente clara e contra todas as tentativas de interpretação da vontade do Criador.

Neste caso, deve-se deduzir de imediato que só Deus poderia ser tão claro ou só a mente de Deus poderia ter feito um comunicado tão completo à Humanidade pela boca de um único homem, após todos os séculos de obscuridade na interpretação teológica de todas as igrejas cristãs.

Todavia, toda esta preciosidade epistemológica ficará inutilizada se cada indivíduo da espécie homo sapiens não perceber a necessidade de dedicar boa parte de seus “tempos mortos” a uma pesquisa minuciosa do que ensinou aquele homem, sobretudo em seu livro chamado “Mere Christianity” (“A Razão do Cristianismo”, que foi depois merecidamente publicado com o nome de “Cristianismo AUTÊNTICO”, e depois imerecidamente chamado “Cristianismo Puro e Simples”), encontrado gratuitamente aqui.

De posse da informação completa oriunda da leitura dessa obra, o indivíduo pode então ser perguntado: restou alguma dúvida? Ficou claro o seu caminho de volta para Deus? Ficou clara a Revelação Bíblica?

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Parta do princípio de que está errado, e estará certo

A fórmula “simples” do Mero Cristianismo, que percorre incólume os séculos, suplanta todas as lógicas e desafia o mundo a encontrar um modo mais vantajoso de solucionar seus problemas.

Uma vez um jovem perguntou a seu irritante professor de religião: “professor, por que o Cristianismo nada oferece sem primeiro culpar suas pretendentes, as almas humanas?”… – Foi uma pergunta muito pertinente e inteligente, pelo menos como sinal de uma atenção acurada sobre um ponto-chave do Cristianismo, ao qual pouca gente tem o mínimo interesse em esmiuçar, já que a própria questão pressupõe o incômodo da limitação das liberdades individuais.

Com efeito, o problema deve ser analisado não necessariamente no plano individual, porquanto na esfera de id, ego e superego, a suposta inviolabilidade da consciência desencadeia uma série de mecanismos de defesa que bloqueiam qualquer conversa sadia neste mister. Necessário, portanto, é iniciar a ilação por um exemplo mais geral, em pessoa jurídica, para possibilitar a visualização do argumento sem os incômodos de uma conversa moralista*. Entretanto esta, por mais que queiramos dizer outra coisa, não conseguirá encontrar exemplos inéditos, pois as pessoas já têm em suas consciências todos os exemplos possíveis de prejuízos causados por erros alheios, e, ao contrário, quase jamais possuem exemplos – honestos – de prejuízos causados por erro próprio.

Ou seja, a velha questão de apontar o dedo para o cisco no olho do vizinho, ou para o rabo do macaco que está no trilho do trem, e negar a trave no próprio olho ou o próprio rabo no trilho, ah, ela se mantém igualzinha à época em que foi proposta, pois desde que o mundo é mundo os erros dos outros são bem claros (e acusados) e os erros próprios são escondidos e negados. Eis aí a “simplória” equação: não existe solução para um erro sem que o equivocado não reconheça que errou e após isso parta para uma solução interna, até voltar ao caminho correto. Qualquer tentativa de reparo sem o autoexame e sem esta operação íntima, será mera miragem sob a luz de ironia pública.

E é isso mesmo que o Cristianismo está careca de dizer e repetir ad nauseam, desde que Jesus o fundou, há mais de dois milênios. Aliás, melhor dizendo, MUITO ANTES de Jesus, pois o Velho Testamento já apontava justamente isto, i.e., que não há solução externa sem um reparo interior.

Todavia e contudo, há um estranho sinal nos nossos dias. Veja.

Que a humanidade reconheça a necessidade de autocorreção prévia diante de um “acidente”, ou mesmo que julgue acertado que a Educação (doméstica e escolar) bata nesta tecla da EXIGÊNCIA correcional para melhorar o caráter de seus “educandos”, mesmo assim, permanece muito estranho o fato de a pós-modernidade ter se voltado contra o Cristianismo neste exato ponto, ou seja, quando ele vem mostrar que sem uma autocorreção NADA mais pode ser feito ou mesmo tentado. Com efeito, até mesmo a ida a uma missa ou culto fica inutilizada se o crente ou comungante se comportar “tapando o sol com a peneira da hipocrisia”; ou seja, se tentar cultuar o seu Deus sem primeiro admitir seus pecados e tentar a reconciliação com Ele. É aqui que entra a pergunta daquele aluno exposta no início deste texto.

Por que será que o Cristianismo não se cansa de afirmar que a culpa de tudo cabe ao Homem e que sem o reconhecimento desta culpa NADA mais pode ser feito? Ou qual a primeira coisa que o padre diz – para o leitor católico – no início da missa? (Para os esquecidos, o padre sempre diz: “Para podermos comungar dos santos mistérios, confessemos os nossos pecados”).

Ora, na melhor das hipóteses, haveria qualquer outra solução para qualquer problema? Como é possível consertar qualquer coisa quebrada sem que seu dono reconheça sua queda e subseqüente avaria? Como qualquer médico poderia curar sem o paciente reconhecer que está doente? Não há mistério algum aqui: Deus nada pode fazer por alguém que não enxerga suas culpas, ou que pensa que não precisa dEle. Este é o centro – e a causa primeira – do Cristianismo e de todas as religiões decentes, queiramos nós ou não. Não há nenhuma forma de religião (religião = religar a alma a Deus) que não entenda Deus como a perfeição absoluta, a qual deseja ardentemente “consertar” seus amados para eles se tornarem amáveis, pois só os amáveis recebem todo amor e conseguem mantê-lo, operacionalizá-lo e retribuí-lo. Tornar-se amável é se tornar o depósito perfeito do amor de Deus, e, desta forma, passar a amar o próximo como Ele amou. Esta é a única conversa do Cristianismo.

A única forma de dizer isso de modo mais claro e direto é repetir o título deste artigo: “Parta do princípio de que está errado, e estará certo”. Isto diz tudo. Porém e contudo, se isto lhe enoja ou se não diz nada para você (ou se nada diz DE você), fique firme e seguro consigo, e não precisa ter religião alguma na sua vida, e muito menos uma igreja. Porquanto sem uma religião e sem igreja, você pelo menos não terá a culpa da hipocrisia batendo à sua porta. E pode ficar tranqüilo: Deus vai achar muito mais lógica e honesta a sua decisão, do que se você tentasse rezar (ou ir à missa) sem aplicar seu coração à regra da limpeza prévia. Deus estará muito mais à vontade com você do que com aqueles milhões que freqüentam templos e enganam os outros, pensando que estão enganando a Deus.

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(*) – Falamos aqui assim, em tese e antítese, dada a antipatia que a mera palavra “moral” suscita hoje em dia. Entretanto, se o leitor estiver entendendo bem, e quiser ver o quanto a Moralidade é decisiva em termos do bom relacionamento com Deus, queira por obséquio e com urgência clicar NESTE link, lendo-o por inteiro. Muito obrigado.

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Você acha que é bonzinho? Veja se é…

O argumento que calou todo mundo foi dado por CS Lewis e inspirado pela mente de Cristo, única capaz de responder a esta questão em definitivo, pondo um ponto final na presunção humana.

“Ninguém pode saber de nada sem tentar aprender na prática aquilo que pressupõe saber, conforme a teoria”. Parece uma frase simples… e, a rigor não deixa de ser, se a olharmos apenas pelo nosso velho vício de fugir de aprofundamentos e coisas “trabalhosas”. Porém sua eficácia e validade apenas acontecem quando se cumpre o que ela mesma sugere, a saber, ir lá pessoalmente e tentar fazer.

Não admira que todo o Plano salvífico de Deus também esteja intrinsecamente relacionado a esta verdade, e as almas só terão a perder se desacreditarem disto ou desdenharem do que CS Lewis explicou a respeito. Inobstante, se este texto for lido por leitores protestantes, a grande maioria irá perguntar por que cargas d’água a bondade humana teria algum valor para a salvação da alma(?). Aqui a leitura do livro “Cristianismo Puro e Simples”, encontrado gratuitamente aqui, se faz urgente e necessária, e por isso entregamos agora o trecho referido:

Este processo de entrega, este movimento para trás a toda velocidade, isso é o que os cristãos chamam de arrependimento. Ora, arrepender-se não é uma brincadeira, absolutamente. É muito mais penoso do que humildemente desculpar-se muito. Significa deixarmos toda presunção e vontade própria que temos exercitado por muitos anos. Significa matarmos uma parte de nós mesmos, sofrermos uma espécie de morte. De fato, para arrepender-se é preciso ser bom. E aqui está a dificuldade. Só uma pessoa má precisa arrepender-se; só uma pessoa boa pode fazê-lo perfeitamente. Quanto pior formos, mais precisamos nos arrepender e menos somos capazes de fazê-lo. A única pessoa que poderia arrepender-se perfeitamente seria uma pessoa perfeita, e ela não precisaria se arrepender.”… (Capítulo 4: O perfeito penitente; Livro II, 7o parágrafo).

Ninguém sabe o quanto é mau até ter procurado muito seriamente ser bom.” (Capítulo 11, “A Fé”, Livro III, 7o parágrafo).

Ficaram claras algumas verdades:

1a- A fé sozinha não é suficiente para a salvação (Tiago 2,24), não apenas porque é um sentimento (sentimentos são volúveis, falhando nas horas de terror e dor), mas porque podem favorecer o inchaço do ego e a presunção;

2a- As obras em si não são capazes de salvar ninguém, enquanto o hábito da sua constância não tiver se fixado na consciência, gerando o bom caráter (caracterizado pela predisposição e pela naturalidade em sua operação);

3a- Almas que não tenham adquirido o bom caráter (pelo hábito natural e constante de praticar boas obras), nunca chegarão à bondade interior, e se não chegarem a ser boas, jamais serão amáveis e jamais apreciarão o ambiente “moralista” (santo) da pátria celestial, e por isso preferirão abandoná-la;

Aqui se vislumbra o argumento principal deste artigo: ninguém consegue descobrir se é bom, ótimo, mau ou péssimo profissional, se nunca tentar executar as tarefas requeridas para o cargo pretendido. Da mesma forma, ninguém consegue descobrir se é boa, ótima, má ou péssima criatura se nunca tentar ser uma boa pessoa, e é aqui que a coisa pega. Com efeito, é justamente a prática da tentativa de ser bom que vai nos mostrar o quanto falhamos e o quanto o ideal de Deus está longe de nós! E, com a bofetada das duas descobertas (a deficiência de nossas “caridades” e a fé falha), todas as nossas ilusões vão por água abaixo, e – se formos honestos – veremos que a situação é pungente e até mesmo desesperadora; ou seja: nem conseguimos confiar em Deus o suficiente para não desanimá-LO; nem conseguimos praticar boas ações com regularidade e exatidão; e nem desejamos uma ingerência externa que limite os nossos excessos.

Portanto, a maioria das fórmulas de salvação encontradas no meio da cristandade não passam de convenções convenientes, atendendo aos interesses próprios de cada credo e denominação, e garantindo quorum suficiente para manter templos e salários pastorais. Neste espírito, a verdade em si, a rigor, nem chega a suscitar maiores interesses por parte dos “pregadores” eclesiais, pois eles já sabem (por experiência e desistência próprias) que “a verdade não faz amigos*”, e se não faz amigos não faz dizimistas.

Porque a única salvação que existe periclita entre a cruz da confiança e a espada da mansidão e consiste no resgate voluntário das almas humildes, acostumadas à miséria da vida e à rejeição, e por isso mesmo habituais no sofrimento e na ajuda aos demais excluídos da sociedade. Com o coração mole e de carne trespassada, podem degustar e gostar dos “poucos” bens que a vida lhes permitiu ter, na Alegria de receber permissão de pelo menos desatar as correias das sandálias do Nazareno.

No último momento da subida e no primeiro da entrada, os humildes nem se lembrarão da fé (as constantes falhas desta darão até vergonha de lembrar dela) e nem verão a caridade que fizeram, dada a pequenez e insignificância dos pequeninos que a receberam. Só terão olhos para chorar de alegria por terem chegado até ali, e talvez ainda perguntem, acanhados: “podemos ficar?”…

Nunca chegaram a ser “bons”, no sentido literal e divinal da palavra. Mas sua humildade (que reconhece muito bem este fato) constituiu aquilo pelo qual Deus julgou ter valido a pena amar até a morte de cruz, e também aquilo que os possibilitou ver com olhos limpos o quanto se afastaram do amor de Deus. Só ali, naquele preciso átimo, houve salvação naquela casa.

(*) – Frase que ficou famosa com a fala do morcegão no filme de desenho animado “Ferngully – As aventuras de Zack e Crysta na Floresta Tropical”.

 

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Uma resposta que só Deus poderia ter dado

No auge da discussão sobre a falibilidade e o sofrimento humano, CS Lewis replica uma pergunta que só o próprio Deus poderia responder, e prova a sua extemporânea canonicidade.

O pessimismo pode reinar livre neste mundo, e com aval da lógica e da inteligência mais avançada. E por que? Porque todas as alternativas apresentadas para explicar a falibilidade humana e as deficiências gritantes da vida tridimensional esbarram na constatação óbvia: o universo de 3 dimensões é tosco, precário e até mesmo vil. Entretanto encontramos nele criaturas como nós, que conhecem a sua existência, identificam a própria consciência individual, curtem a beleza, sentem o prazer, sofrem dores e correm riscos enormes, inclusive de perda da sanidade mental.

E pior: com a pouca inteligência de que dispõe, o Homem pode questionar tudo, inclusive os porquês de sua própria existência cheia de limitações, ou de sua criação propriamente dita, ficando a mercê dos ouvidos de um universo que aparentemente não tem boca para responder. Note: aparentemente. Porquanto “o universo” deu ao homem (mesmo usando só a ciência para saber) a capacidade de pensar sobre si mesmo e sobre o seu todo, como se tivesse guardado para o futuro a resposta que dependeria da amizade da criatura com o suposto Criador, por assim dizer (para usar uma linguagem simpática aos céticos).

Mas a resposta já chegou.

Não regido pelo tempo dos homens, o Criador jamais estabeleceria uma Lei que não tivesse validade eterna, por Sua própria eternidade; e isto traz a inquietante complicação da velha questão religiosa: é que as leis antigas (como as do Velho Testamento, p. ex.) nunca ficariam revogadas, já que a rigor o seu tempo nunca passou. Com leis eternas, tudo o que foi determinado antes da criação da Humanidade está em pleno vigor, e assim ficará para sempre, já que a Perfeição não faria uma lei que precisasse de correção (isto ainda é o raciocínio simpático aos céticos).

Logo, dizer que a resposta já chegou e que ela também é canônica (mesmo tendo sido dada por CS Lewis, quase 2.000 anos após a canonização oficial), não passa de uma lamentável limitação da linguagem humana, porquanto ela sempre foi canônica e a Humanidade nunca a teria captado antes, precisando do nascimento de uma mente como Lewis para colhê-la da mente de Cristo. Assim, nada há de incorreto ao afirmar a sua canonicidade, pois esta credencial não se deve a Lewis, e sim à eterna comunicabilidade de Deus.

Qual foi a resposta que Lewis captou e divulgou?

Em um de seus livros (“Cristianismo Autêntico”) no auge da discussão sobre a falibilidade e o sofrimento humano (Livro 2: “Em que crêem os cristãos”; 3-‘A Alternativa Surpreendente’; quarto parágrafo), CS Lewis replica uma pergunta que só o próprio Deus poderia responder, e dá a resposta que a cristandade adicionaria ao Cânon, se se lembrasse da perenidade que rege todas as leis de Deus. A pergunta (que todo ateu faria, se chegasse a tal altura de raciocínio) é: “Por que Deus fez o homem de material tão ordinário que se estragou?”… – Ou se, após questionar e perfeição de Deus e descobrir a insistente errância de cada homem e de toda a Humanidade, o Criador não tivesse resposta para explicar porque fez a raça humana tão frágil e deficiente…

A resposta é uma sacada exponencial: “Talvez nós tenhamos sido o último experimento de redução da perfeição consciente!”… – O que significa isso? Voltemos os nossos olhos no tempo.

A Criação teve início. Todas as obras partiam da imaginação de Deus, a perfeição absoluta. A guisa de tornar a informação mais didática, imaginemos nós uma sucessão de operações para formar uma série de seres vivos, escalonados do mais elevado (ou mais próximo da perfeição) ao menos elevado ou menos perfeito, indo a tal série do mais portentoso arcanjo ao mais diminuto verme microscópio: não é necessário aqui, para o presente raciocínio, emitir qualquer juízo moral, porque a noção exigida requer atenção apenas para o escalonamento ontológico, e já fornecerá aquilo que o argumento precisa. No mais, é lembrar que a série aqui se refere apenas aos seres vivos e portadores de alguma consciência ou pré-consciência.

Visualizemos primeiro os extremos. A primeira obra é a mais perfeita (correspondendo, por assim dizer, a 99,9999999999%… da perfeição de Deus) e a última é a menos perfeita, equivalendo à criação de um ser vivo cuja mente (digamos assim) é tão insignificante que nem consegue se comunicar com seus próprios semelhantes microscópicos, mesmo ao nível mais instintivo. Pois bem. Onde se localiza o Homem?

Aproveitando a geografia do verbo localizar, o Homem se localiza “ao Norte” com os querubins, “ao Sul” com os macacos, “a Oeste” com os peixes e “a Leste” com as aves. Dos anjos menores ele possui uma mente abstracionista o suficiente para conversar com seres “invisíveis”, e deles ouvir respostas. Dos macacos ele possui a genética e a operacionalidade, constituindo uma ontologia ao mesmo tempo “líder e serviçal”, mas desperta o suficiente para realizar as tarefas do seu cotidiano animal. Dos peixes ele possui a fertilidade, a relação com a água e sua necessidade dela. Das aves ele possui o sonhar e o desejo de voar, na metáfora da chamada para a perfeição.

Na escala da Criação, o primeiro ser abaixo do Homem não teria mais consciência “desperta” (por assim dizer) e precisará do Homem para alcançá-la. Ou seja, o primeiro macaco esperto que se situa logo abaixo do Homem, precisará deste para chegar a ser Homem e assim sucessivamente. O raciocínio é válido para a sua realidade oposta, i.e.: o primeiro ser acima do Homem teria uma melhor consciência ou a consciência mais “desperta” (por assim dizer) e será ele o próximo estágio do Homem ou, melhor dizendo, será este o responsável por conduzir o Homem aos estágios seguintes de sua evolução.

Noutras palavras: (1) do Homem para baixo a consciência vai sumindo até chegar à escuridão ontológica daquele verme que mal se comunica instintivamente com outros vermes. Os cães então seriam animais muito nobres e elevados, pois não apenas têm consciência de si e de seus semelhantes, mas são capazes até de se comunicar conosco. As baratas seriam seres quase obscuros em termos de consciência, pois mal conseguem comunicar-se com as outras baratas, exceto em seus impulsos instintivos mais primitivos. (2) do Homem para cima, a consciência vai crescendo até chegar à luz da compreensão angelical, capaz de sacar toda a mecânica da Criação e os planos da mente de Deus, dos quais só há pontos obscuros quando raramente e se desejados pelo próprio Deus. Os querubins e serafins seriam os seres em escala seguinte à consciência humana, embora isto não signifique que entre homens e anjos não haja uma série de seres intermediários, como os elementais, os “suprafísicos”, os “hiperbóreos”, os zeróides, os “não-sei-o-quê” e outras criaturas mais que a imaginação conceber ou até seres inimagináveis.

O quadro iluminou-se. Agora podemos retomar a pergunta: “Por que Deus fez o homem de material tão ordinário que se estragou?”… E ela agora não faz mais sentido. Porquanto Deus não fez o Homem de material tão ruim que se danificou pelo uso, mas sim que Deus experimentou uma obra de criação que conduzisse a perfeição do seu mais alto patamar ao mais baixo, ou até que ela quase nem se parecesse mais perfeição, por assim dizer; porque a perfeição é perfeita até quando se desfaz de si e procura multiplicar-se redutivamente até onde chegaria sem extinguir-se em falhas irreparáveis! (No pensar oposto, para o alto ela não poderia ir mais, pois, por definição, a perfeição é o limite de si mesma).

Logo, no ponto onde a perfeição alcançou o nível do Homem, criado livre e consciente, houve uma decisão qualquer da criatura que a danificou e influenciou negativamente a parte de sua perfeição que guardava poderes cósmicos. Vendo Deus que o Homem, com a consciência estragada e mantido livre com aqueles poderes, poderia produzir efeitos destrutivos e ameaçadores de outros seres, “aprisionou” o Homem em suas limitações básicas, a saber, restrito ao Planeta Terra, às precariedades da natureza animal e ao espaço tridimensional.

A criação, pois, era e é um risco inesgotável, enquanto pressupor a feitura de criaturas livres e com livre-arbítrio eterno, e por isso o Homem não foi o único ser a cair. Antes dele, e no elevadíssimo patamar dos arcanjos, uma outra criatura caiu e contaminou muitos outros, formando uma rebelião tão perigosa que precisou ser aprisionada aqui na Terra, junto com os mais frágeis seres na escala da perfeição, e de quem Deus pressentia uma possibilidade grande de influência da mente angélica.

A pergunta “Por que Deus fez o homem de material tão ordinário que se estragou?” nem cabe mais na sequência do raciocínio, pois se um ser angélico caiu, sendo quase perfeito, então o buraco é mais embaixo e a razão da Queda não está na qualidade do material com o qual fomos criados, e sim na nossa má escolha consciente, que deliberadamente preferiu “experimentar” o caminho sem volta da vida livre sem Deus, julgando o Pai-criador um estorvo, ou um irritante “desmancha-prazeres”. Os estragos verificados em nossos corpos no decorrer de nossa História não são resultado de má qualidade de nossa matéria-prima, mas sim da má qualidade de nossa escolha, que conseguiu o milagre às avessas de acreditar que a vida longe da perfeição absoluta poderia ser de alguma forma compensada por nossa pífia perfeição, alcançada bilhões de degraus abaixo do ponto onde o Criador queria que chegássemos.

Isto certamente não é a resposta final para seres que se imbecilizaram tanto por livre e espontânea vontade, que nem mesmo a explicação de Deus seria aceita. A última esperança é que a sugestão de leitura dos livros de Lewis seja seguida, pois não há na Terra nada que explique melhor o quadro todo, e nem os autores da Bíblia chegaram a tanto. A perfeição viu que para (re)alcançar as criaturas distantes era preciso um Homem quase perfeito atuando em pleno Século XX, para que sua explicação perfeita encontrasse uma boa vontade qualquer, livre, ainda que moribunda. Se estas últimas palavras forem apenas um sermão aos peixes, a perfeição poderá contar, pelo menos, com a minha boa vontade.

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Sola Scriptura: O absurdo dos absurdos

Após irromper a Reforma, cinco lemas de identificação do “novo cristianismo” grassavam no mundo, e no meio deles, uma aberração doutrinária impunha a ignorância total como sinônimo de segurança.

Os cinco lemas ficaram conhecidos como “Cinco Solas” (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura, Solo Christus e Soli Deo Gloria) e nunca mais abandonaram a sua aderência e influência no meio da cristandade pós-Reforma, e por obra e graça deles, o Cristianismo segue cada vez mais fragmentado e agora a assistir, chocado, à eclosão da Teologia da Prosperidade no chamado “neo-evangelicalismo”. Todavia, esta profusão de seitas e igrejas-empresas nem chega a ser o maior prejuízo da Reforma, conquanto estejam todas as almas por ela enganadas a mercê de uma crença frágil e sem qualquer segurança para enfrentar “doutrinas de demônios”, frequentes e insidiosas nestes tempos loucos.

Isto compõe o absurdo que foi o engano desastroso de Lutero e seus seguidores de aventar a hipótese de que a Bíblia Sagrada (sobretudo o Novo Testamento, livro-base de todos os cristãos), pudesse chegar de paraquedas e entrar nas casas e nos corações humanos sem nenhuma ajuda exterior, como se o mero fato de haver uma comunicação fosse tão simplório como respirar com os pulmões sadios, e todos a respirassem sem problema algum.

Porquanto o erro já começa na ignorância para com a Teoria Geral da Comunicação, a qual ensina que entre quaisquer emissores/receptores, inúmeros ruídos na comunicação ou falhas nos próprios comunicadores (auditivas, mentais, circunstanciais, etc.) resultariam em desinformação ou contrainformação, impedindo o objetivo exclusivo de promover entendimento entre as partes. Como todo o planeta e o próprio ato de comunicar alguma coisa dentro de uma atmosfera densa comporta bloqueios audíveis e inaudíveis poderosos, a primeira coisa que os cristãos deveriam ter feito (e o fizeram, lá por volta do Século III, muitos séculos antes da Reforma) era se garantir de facilitar a compreensão da mensagem bíblica, usando para isso de todos os meios possíveis para “traduzir” –  em sentido amplo – a vontade de Deus ao povo, sob duas razões justíssimas:

(1a) Grande parte do povo sempre foi feita da massa ignorante ou cuja vida de prazeres (ou de luta pela sobrevivência) frequentemente distrai toda a atenção e impede que haja tempo para estudar qualquer coisa. Eis porque distinguir clero de laicato sempre foi um recurso salvífico, e não uma imposição sectarista.

(2a) Grande parte da caridade salvífica do plano de Deus estava posta justamente no trabalho de levar a salvação ao povão ignorante, e nenhuma obra de caridade poderia ser mais importante do que comunicar a vontade de Deus de modo claro e convincente. Isto impõe a lógica óbvia: se a maioria é ignorante e alguns aprenderam alguma coisa (como os apóstolos de Jesus), alguém estava pois sendo chamado a repassar aos outros aquilo que aprendeu com Deus.

Tudo estava, portanto, programado para a situação de existência de almas-alunas e almas-mestras, e esta certamente era a vontade de Deus desde que os planos de salvação foram revistos após a Queda de Adão e Eva. Aliás, Deus nunca refaz um cálculo sem adicionar uma equação derivada, da qual não se possa dispor de mais uma ferramenta de alcance do resultado almejado. Por isso toda a tragédia da Queda resultou numa avalancha de caminhos de salvação amparados pela misericórdia e pela onipotência, e as almas humanas ficaram, por incrível que pareça à primeira vista, muito mais “bem cuidadas” do que estavam na aparente solidão do Éden. É como tocas de ratos em espaço urbano: há sempre muito mais saídas do que entradas.

Com efeito, a proposição do Sola Scriptura afronta diretamente a lógica cristalina do Plano de Deus, já na origem do ato de comunicação em si, que Deus operou via Transposição, a qual constituía o único meio de reduzir todo aquele conhecimento ao nível humano e assim precisaria de todos os recursos possíveis para chegar ao objetivo de ser compreendida por aqueles que queria informar. Dentre os recursos possíveis, Deus viu a extrema UTILIDADE de fazer uns ajudarem aos outros (os que sabiam ajudarem aos que não sabiam) e assim PROPAGAR a mensagem salvífica para retirar todas as almas perdidas de sua perdição. E esta obra, diga-se de passagem, não deveria ser entregue a anjos, pois seres que nunca pecaram não teriam “testemunho de experiência” para convencer pecadores, assim como um ex-viciado ajuda mais a um viciado do que alguém que nunca usou droga.

Tendo que outorgar essa missão a homens e mulheres “sadios”, restava instruir a estes para saírem a campo e pregarem a Boa Nova, dando aos pecadores oportunidade de conhecerem a Vontade de Deus e aos pregadores a oportunidade de fazerem a caridade por excelência.

Mas então, quase 1.200 anos depois, surge um religioso cristão, “criado e educado” na Igreja fundada por Jesus e, num átimo confuso de embaçamento dos seus miolos, esquece ou premedita (prefiro pensar que foi só esquecimento mesmo, dada a falibilidade da memória humana) uma teologia na qual as Escrituras, mormente o intrincado Novo Testamento, seria entregue a torto e a direito à bulha das massas, como se entregar um notebook a um cão fosse resultar em algum e-mail erudito. Nasce aqui o Sola Scriptura, que imediatamente suscita a pergunta: o que aprenderia dali uma alma ignorante que fosse sozinha mergulhar nas mais de 1000 páginas da Bíblia?

Não há resposta aqui, uma vez que eles mesmos, os egressos da Reforma, se tornaram os principais pregadores das Escrituras! Foram eles que fizeram a Bíblia ser traduzida para o mundo todo (numa grande caridade, diga-se en passant) e a espalharam a bel prazer, incitando o povo a desdenhar e desmoralizar a pregação católica!. Estava, pois, ali, a prova a queima-roupa da incoerência intrínseca do Sola Scriptura, pois eles mesmos não deixavam a Escritura a sós! E, afinal, em seu erro estavam certos neste mister, pois a Bíblia deixada a sós não faria com que tantas multidões os seguissem, tal como o Manual do Escotismo não leva todos os jovens a se tornarem escoteiros e nem os escoteiros a aprenderem todo o seu conteúdo sem seu instrutor mais experiente. Isto é, afinal, uma consequência lógica de todos os conhecimentos, a saber: a exigência de que os mais antigos no aprendizado o repassem aos mais novos, e assim sucessivamente, numa grande cadeia lógica de caridade para com a Educação em sentido amplo.

Com o tempo, a obviedade da necessidade de ensinar aos outros aquilo em que acreditavam os levou ao mesmo erro ao qual se opuseram, assumindo eles uma interpretação particular que julgaram divina, da mesma forma como o Catolicismo julgou divina a sua interpretação, e com razão, já que ela era a mais próxima, no tempo e no sentido, da catequese apostólica, que nasceu com os apóstolos (PS: este fato também era aceito pelo próprio Lutero antes do absurdo da venda das indulgências ter ofendido a consciência cristã dos séculos anteriores: a rigor, não há nada anormal em errar, e até errar feio, como hoje o protestantismo erra adoidado, e assim Deus pode ter usado Lutero para fazer a Igreja rever seu erro). Logo, se a Igreja estava cometendo um erro crasso de abuso da autoridade outorgada por Deus para a condução do rebanho, o mais lógico era tentar até o fim uma conscientização a quatro paredes, com muita paciência e trabalho, para evitar que a Noiva de Cristo ficasse dividida e se fragmentasse em mil e uma denominações cristãs, confundindo mortalmente as almas (o exemplo de São Francisco é muito bem vindo aqui).

Inobstante, já que muitos leitores podem estar atualmente envolvidos com o lado reformado, o presente argumento não poderia ser posto sem um maior referencial bíblico, porque os filhos da Reforma, enquanto não seguirem cegamente seus pastores, julgam como única possibilidade de comunicação de Deus aquilo que estiver NA LETRA (quase sempre) das Escrituras, e quase nunca nas entrelinhas, embora eles, dependendo de seus interesses proselitistas, usam umas e outras para convencerem possíveis futuros adeptos.

Que diz a Bíblia sobre o absurdo do Sola Scriptura? A primeira coisa a ver agora é que o Sola Scriptura se levanta contra a própria Escritura, que propõe sempre o auxílio de terceiros na elucidação de seus ensinos e enigmas, e a própria convocação de Deus aos profetas é uma prova eloquente dessa realidade. Mas não olhemos aqui para o Velho Testamento, pois isto suscitará a surdez irada ou a ira surda de desprezo da razão, pois a atenção dos nossos interlocutores muda a 3 por 4, dependendo dos interesses deles.

O que diz o Novo Testamento? São tantas as passagens que não será possível enunciá-las aqui. Porém atentemos nas seguintes.

Certa vez Paulo disse a Timóteo, numa ocasião em que ficou um tempo longe de seu discípulo: “não se esqueça de trazer os livros”. E mais à frente disse: “até a minha chegada, aplica-te à leitura, à exortação e ao ensino”. Certa vez Pedro disse que nas Escrituras “há coisas difíceis de  entender, que os ignorantes deturpam, e que o amado irmão Paulo explica segundo a sabedoria que lhe foi dada”. Pedro também disse que “as Escrituras foram pregadas por homens santos inspirados por Deus”, que do Senhor receberam esta missão necessária para a sua boa interpretação. Enfim, é um verdadeiro desfilar de provas a favor do auxílio à iluminação do Caminho da Salvação, entregue a todos os pregadores cristãos, como “luz do mundo e sal da Terra”.

Porém, o grande momento do Novo Testamento a favor do auxílio às Escrituras (portanto contrário ao Sola Scriptura) foi numa ocasião em que um mordomo eunuco de uma rainha da época, chamada Candace, regressando de uma cidade a outra, encontrou pelo caminho a Felipe (aliás, Deus o levou até lá) e o eunuco, quando Felipe fez a pergunta contrária ao Sola Scriptura (“entendes o que vens lendo?”), sem pestanejar respondeu: “como poderei entender se ninguém me explicar?”…

Mas a nossa consciência não tem “lastro” suficiente para ver TODAS as implicações desta constatação óbvia, sobretudo se estivar há anos ou décadas acostumada a ouvir só o lado interno de sua igreja. Por outro lado, se a intenção secreta era apenas denegrir a interpretação católica, assumir a incoerência de uma nova interpretação particular não incomodará consciência alguma, uma vez que a mente, seduzida pela acídia e pelo conforto da pertença a uma presumida Casa de Deus, lutará bravamente para se manter ali, custe o que custar, e arremessará “o apelo incômodo” no mar de lama da igreja mais velha, tal como os irmãos mais novos sempre poderão alegar que o mais velho foi quem os induziu ao erro.

Entretanto, a bravata do Sola Scriptura é tão hedionda que não apenas dividiu o Cristianismo, mas trouxe com ela uma série de outros equívocos, porque uma desgraça nunca vem sozinha. Por exemplo: esmaeceu a cultura cristã; relativizou a instrução pastoral; criou o clima de desconfiança recíproca entre estudiosos da Bíblia; roubou ou esvaziou todo o valor da literatura cristã, deixando-a órfã de pai e mãe, como se Deus estivesse amordaçado e não pudesse mais inspirar ninguém para o ensino das Escrituras; eliminou ou minimizou o valor da Teologia, incentivando a eleição de ministérios pastorais sem formatura alguma, ou a depender da mera inspiração pessoal (que mesmo assim irá ensinar a outros!); enfim, um desastre estrondoso, sem contar a queima das bússolas atualizadas das encíclicas papais e outras instruções do Magistério, por total desprezo da primeira e única Noiva de Cristo.

Finalmente, a Escola de Aprofundamento Teológico já pôs à disposição do grande público a 1a Edição de sua obra específica para tratar dos “Cinco Sola”, e o leitor pode ter um bom complemento deste artigo (que a médio prazo será incorporado à 2a Edição) clicando num dos links fornecidos ao final deste texto. É uma singela contribuição para com o longo e penoso trabalho de Deus para reunir, num só rebanho, todos os presunçosos e trabalhosos filhos do mundo, cujas almas Jesus não desiste de tentar buscar. Se esta contribuição será bem recebida (ou até entendida) é outra conversa, e acreditar numa resposta hostil não será nenhum absurdo. Oramos a Deus para que pelo menos a boa intenção seja percebida, sem a insinuação de ser mais um mero apelo proselitista.

Links para o livro citado:

<https://www.clubedeautores.com.br/book/133179–Sola_Fide_Sola_Gratia_e_Sola_Scriptura>

<http://www.agbook.com.br/book/133179–Sola_Fide_Sola_Gratia_e_Sola_Scriptura>

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A inevitável necessidade da teoria

A grande massa humana prefere sempre, sem esforço algum, coisas que não exijam dela nada além de um divertimento ou um descansar após poucos segundos de atenção. Como então conduzi-la a descobrir o valor do conhecimento?

A infraestrutura que sustenta a realidade é muito exigente para permitir que subsistissem seres racionais tão frágeis como nós e ainda habitando o mundo tão-somente para curtir instintos e prazeres deles derivados. O modelo inventado pela “inteligência” humana que, neste quesito, nem chega a parecer inteligência, ultrapassou seu prazo de validade há séculos e já pode ser banido sem dó nem piedade, esperando uma nova Humanidade iluminada, onde mentes valham mais que corpos e organização valha mais que diversão.

No estado atual, onde a anarquia e a depravação imperam soltas, não restou nenhuma brecha para uma revisão criteriosa do comportamento e muito menos do saber por pensar e do pensar por saber, condenando todo o conhecimento acumulado ao lixão da mediocridade, e assim as questões do espírito, que sempre repousam sobre toneladas de reflexões, não têm a mínima chance de chegar aos ouvidos e consciências humanas.

É pois, desta feita, espantoso o lugar empoeirado e esquecido onde foram colocadas as reflexões mais caras à Humanidade, e sempre espantará a qualquer um que as veja ali e venha a saber que as pessoas se tornaram infelizes por mera negligência, forjada a partir da mentira de que a única vida que vale a pena ser vivida é a da carne.

Em nome disso ou em nome desta, nenhum conhecimento útil que não seja comunicado em 5 minutos, ou que não possa ser registrado numa única lauda, será sumariamente deletado e tratado como indigente, com sua voz retumbante a silenciar-se na lama das omissões. Mesmo um Guia de Sobrevivência em caso de uma catástrofe “natural”, ainda que avisada com bastante antecedência, correrá sério risco de jamais ser lido ou sê-lo apenas em suas partes destacadas; porquanto qualquer comunicação que se afigure demandar mais tempo será engavetada no cofre sem chave ou soterrada na amnésia absoluta.

A leitura de qualquer coisa não é um hábito do nosso tempo, e em países como o Brasil, este absurdo nem chega a ser combatido, uma vez que os próprios professores também lêem pouco, ou lêem apenas aquilo que se liga estritamente à matéria de seu magistério. Não é à-toa que ouvir professores de português dando entrevistas na TV é uma vergonha até para quem não se formou em letras, e os mesmos nem se envergonham de deixar a má impressão de ter conseguido o emprego via pistolão. Os antigos diziam: “Não há nada errado na Lei se quem falar errado for o rei”: a semelhança com pessoas vivas não é mera coincidência.

Até bulas de remédios também não são lidas, mesmo quando eles são do tipo capaz de gerar alergias sub-reptícias ou mesmo quando foram receitados para doenças graves (e note, estou falando para uma época onde as bulas são obrigadas a ser escritas em linguagem popular e letras grandes, e onde o Ministério da Saúde pede a sua leitura, e mesmo assim passam como fantasmas dentro das caixas dos medicamentos). Quando muito, nos casos de moléstias mais sérias, o paciente ouve o médico e se dá por feliz quando o médico fala pouco ou diz que tudo está bem.

São exemplos práticos de uma realidade nua e crua: ninguém quer se envolver com qualquer coisa que exija compromisso demorado, e isto abrange um leque de coisas que vão da mera leitura de um livro até um romance que se encaminhe para um matrimônio. Com efeito, estamos na era do descartável e do imediatismo, como se ninguém fosse viver mais do que uma semana.

O problema ganha contornos megalomaníacos quando está em jogo a integridade física, psíquica e espiritual das pessoas, e quando as fórmulas salvadoras necessitam de conhecimento pessoal das teorias que permitiram suas descobertas. E se tal fórmula vale para ameaças à vida biológica, que subsiste sobre a matéria tridimensional e perfeitamente tangível, o que não dizer de um conhecimento necessário à proteção de uma ameaça espiritual? Ora; a materialidade é a menina dos olhos do ateísmo e de outras formas simplistas de enxergar o Universo, e os céticos de um modo geral – com honrosas exceções – são chegados a uma crença iletrada ou pouco trabalhosa, por se deixarem seduzir pelo aparente isolamento cósmico do homem e pelo sofrimento irremissível das pessoas (segundo julgam) inocentes. Os incrédulos geralmente só se interessam por leituras que reforcem suas descrenças, desde que não lhes tome tempo demais.

Ora; se até para conhecer fórmulas de escape de uma ameaça física o desinteresse em leituras mais longas é encontrado, o que não ocorrerá quando a ameaça for espiritual e necessite de muito mais “teoria” para visualização da salvação? Ou, doutra feita, se o labirinto onde a Humanidade se meteu for maior e mais perigoso que o do Minotauro, como ajudar a encontrar a saída para as pessoas que não acreditam que caíram nele ou que se alienaram a tal ponto que nem enxergam os rastros do touro-bípede e nem querem perder tempo lendo o Guia das suas vielas?

Mas cheguemos ao nosso labirinto. Estamos num planeta em franca decadência. Nada nos diz que a Humanidade encontrará uma saída para o problema da destruição da biosfera e muito menos para a explosão demográfica, ao menos do ponto de vista coletivo. Porém é provável que, do ponto de vista individual, se uma alma presumivelmente ainda pura se interessar por saber qual o estado em que se encontra o mundo e ela mesma, a única opção que resta é mergulhar fundo na “teoria”, i.e., procurar tornar-se letrada ou douta nas fontes silenciadas da verdade, por meio das quais algo mais verdadeiro se mostre e ela enfim perceba o quão longe se distanciou do estado original. Este é o único caminho.

Assim sendo, a melhor sugestão é lhe informar que o lugar onde a “teoria” mais verdadeira se encontra se chama “CS Lewis”, e seu primeiro ponto de parada para reflexão se chama “Mere Christianity” (ou, em nossa língua, “A Razão do Cristianismo”aba “Livros”com uma tradução em segunda pessoal do plural para janeiro de 2013). Aqui uma alma sedenta encontra uma fonte precisa e incontaminada, muito mais indicada do que a própria Bíblia, pois ela elimina os desvios e erros de interpretação bíblica que qualquer religioso comete. Seu autor não se formou em teologia e muito menos se ordenou a qualquer ministério pastoral, e por isso sua palavra tem a pureza da reflexão de uma alma escolhida pela Transcendência para “traduzir” e ampliar o conhecimento de Deus, iluminando o caminho para quem não pode ouvir os religiosos e muito menos os ateus. Diante de Deus, sozinha com seu autor (CS Lewis), em um lugar sossegado, mas somente se estiver disposta a dedicar todo o seu tempo à sua salvação pessoal (ou pelo menos o tempo necessário à leitura meditada naquele livro), aquela alma “sortuda” poderá conhecer a “Joy” – Alegria – que salvou Lewis, após a ampliação de sua consciência pela instrução recebida.

Após este “milagre” (muito maior nela do que em Deus), aquela alma deverá comparar tudo o que aprendeu ali com as linhas e entrelinhas da Palavra de Deus, além de buscar os demais livros de Lewis, sobretudo “Milagres”, ‘O Problema do Sofrimento’ e “O Grande Abismo”. Se ela chegar a tanto, não apenas o caminho estará mais iluminado e seguro, quanto a cada passo os riscos de uma desistência dela ficarão menores.

Nesta altura ela pode perguntar, com justiça: “Mas por que nos desviamos a tal ponto de perder até mesmo o interesse de nos salvar? (tudo isso depois de entender que toda a volumosa teologia ensejada por Lewis não era nada mais que o único Conhecimento necessário, o qual jamais deveria ter sido silenciado ou engavetado em nosso inconsciente, e ao qual todas as almas deveriam ter se aliado dentro do mundo corrompido!). Neste sentido, ficará bem clara a obviedade da teologia apresentada, como se ela fosse aquilo que jamais poderia ter saído de nós, do mesmo modo como o saber andar de bicicleta jamais se perde de quem o aprendeu uma vez.

No final, ficará patente e explícita uma verdade que espantará para sempre a qualquer alma que já o tenha aprendido, por sua aparente injustiça: por que as pessoas foram fugir de algo que ao final iriam julgar trabalhoso demais para recuperar, quando já viviam dentro dele e sem necessidade de ir buscá-lo? Por que trocaram o fácil pelo difícil, quando queriam só vida mansa?

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Uma certa discussão com o Criador

(Trecho de um livro que a mente ainda não parturiu)

–         Sim, estou feliz por ter sido criado, mas vejo muita coisa no mundo que não entendo e detesto, sobretudo a injustiça cósmica…

–         O que você chama de injustiça cósmica?

–         Saber que alguém que se diz “PAI infinito” irá condenar almas tão finitas a penas infernais, inclusive antecipadas na terra.

–         Nunca condenei, condeno ou condenarei ninguém a pena alguma! Até porque a auto-condenação da angústia e da depressão já fazem um estrago tão grande na alma que os homens maus (conquanto estejam lutando contra sua própria felicidade) até chegam a suscitar piedade em meu coração, pois eu os criei para serem felizes.

–         Então, quer dizer que até mesmo os estupradores e pedófilos ficarão livres?

–         Claro que não! Eles já estão presos em si mesmos num inferno astral terrível, e só possuem uma única chance de sobreviver, e a depender de um instante de sono de sua maldade, quando por uma frestinha a luz poderia entrar. Afora isso, não há pior prisão do que esta para quem já perdeu toda a liberdade. – Mas… a propósito, você não está pensando que se distingue tanto deles, não é?…

–         Não e sim. Conheço bem a doutrina do pecado e sei das carapuças incômodas que habitam no meio de sua dialética. Mas pelo menos não tenho nenhum autoexame a apontar para o lado mau. Mas responda, Senhor: E o mal que os pedófilos fizeram aos inocentes?

–         Está escrito: “Que mal me pode fazer o homem?”; todos os inocentes foram criados com um dispositivo de proteção contra a dor da alma, e sua dor física é muito mais aparente do que real; com efeito, a sua parte real foi construída apenas para tentar gerar nos criminosos pelo menos o cheiro do sentimento de piedade (não por causa da vítima, mas sim para tentar fazê-los refletir um mínimo que seja sobre seus atos, e assim possibilitar-lhes a cura; pois a piedade foi o grande bem que ele perdeu, a qual é a geradora de todas as virtudes). Logo, nenhum pecado é tão grave que não possa ser perdoado, e nenhuma santidade é tão pura que não possa ser tentada.

–         Mas a pedofilia não ofende ao Senhor e desperta a Sua ira?

–         Sim, mas isto não tem nada a ver com a dor da vítima (que pode ser traduzida como um INCÔMODO DESPERTADOR DA ALMA, como afinal são todos os sofrimentos para este mundo surdo!), a qual pode até ser ruim, mas nunca irá além do que se pode suportar, como disse meu filho Paulo, e no final o maior ofendido sou eu mesmo.

–         Como o Infinito Coração pode se ofender com vermes tão microscópicos como nós?

–         Os vermes cometeram um pecado gravíssimo!

–         O que poderia ser tão grave vindo de vermes tão insignificantes?

–         Uma mente humana jamais seria capaz de entender um desejo que aniquilasse a si mesmo e com isso a levasse a rejeitar a única coisa capaz de fazê-la feliz. É como se os homens pudessem provocar um suicídio em sua própria alma (rejeitar a mim é suicídio). Todavia, como suas almas são imortais, eles viram mortos vivos e cegos, soterrados sobre toneladas de maldades decorrentes daquele primeiro ódio que me rejeitou. É isto o que eu chamo de inferno, ou é este o único inferno que existe.

–         Puxa! E somos mesmos capazes disso? Nós pobres vermes?

–         Sim. Em termos mais práticos, eu os criei com poderes tais que o próprio universo poderia ser “redesenhado e reconstruído” pela telecinese transcendental de uma mente maligna, e por isso eles foram capazes de um ato desencadeador do mais sério risco corrido pela Criação.

–         Mas esse risco ofenderia o Senhor, que tem coração infinito?

–         Sim, e justamente por isso. Um coração infinito está presente em tudo, inclusive nas menores criaturinhas do cosmos, e por isso sofre infinitamente pelas dores e injustiças sofridas por essas criaturas (que não pediram para nascer e por isso não merecem sofrer de forma alguma).

–         Então, se entendi direito, a rejeição ao Senhor leva a um ódio interior que se externaliza em atitude de rejeição geral pelas coisas que lhe pertencem, culminando pelo desejo de exterminar todas as formas de vida que recebem seu Amor e com ele se satisfazem! É isso?

–         Sim. Você entendeu direitinho. É isso mesmo. O ciúme não é apenas físico; pelo contrário, nasce na alma e dela se alimenta.

–         Okay; entendi sim. Agora estou vendo melhor a extensão do nosso mal. Mas deixe perguntar de novo: a morte não é um castigo muito duro?

–         Você cria palavras para coisas que não existem.

–         O que não existe?

–         Morte, castigo…

–         Mas todo dia morre gente a 3 por 4, e muitos sofrendo horrores!

–         Todo dia gente viaja a 3 por 4 e muitos sofrendo alguma coisa, por sua própria rebeldia interior ao Bem que lhe quer salvar. Os que sentem uma dor maior têm a sua viagem antecipada para evitar prejuízos à alma, cujos ouvidos têm de estar íntegros para a longa conversa do Hades. Era isto que você deveria ter dito.

–         Então morrer é viajar? E toda a dor é apenas algum incômodo didático-medicinal?

–         Sim. Mas sei que minhas palavras sempre serão insuficientes, pois o pior prejuízo da rebeldia da Queda foi justamente incitar o coração à desconfiança de Deus, e, a partir dela, à desconfiança generalizada.

–         Mas onde está a didática medicinal disto tudo?

–         A lição da fragilidade da vida está todo tempo esbofeteando-lhes o rosto, e ao contemplar sua incorrigível fragilidade, a cura começa a imiscuir-se pela humildade que se impõe.

–         E há mais alguma “vantagem” didática envolvida?

–         Sim. Quero ver aonde eles vão parar! Quero ver como é que eles vão se sair quando, quase no fim do mundo, perceberem que todos os esforços e caminhadas em busca da satisfação de seus desejos, termina num beco sem saída, onde precisam largar alguma coisa em que se viciaram para salvar a própria pele. É exatamente como o ladrão que, tendo conseguido botar nas costas um saco grande cheio de ouro e nas mãos um saquinho pequeno, se vê obrigado a largar o sacão para poder correr na chegada da polícia. E pode decorar: é sempre assim: o enorme bem que quero lhe dar precisa da devolução do bem menor que você já curtiu, ou então cada perfeição oferecida à sua alma necessita da retirada voluntária de uma imperfeição com a qual ela já se viciou. Se você tiver aprendido esta lição, quase posso dizer que já não precisa aprender mais nada. Pelo menos neste mundo.

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A impossibilidade de se dar um “NÃO” ao ditador

Mergulhada numa crise moral generalizada, a Humanidade caminha para a surdez total ou para o choque da rejeição violenta, quando acordar e desejar mudar o rumo das coisas…

Não sei como conduzir este assunto sem tratá-lo como uma história ficcional, cujas personagens centrais estão vivendo num planeta imaginário, no qual a escalada da depravação e da violência foi longe demais e teve, para sua própria sorte, a bênção de uma intervenção divina que acabou com tudo, como se uma destruição física impedisse um desejo d’alma e como se uma explosão nuclear fosse um castigo de Deus, e não um reparo providencial de emergência. Na realidade, porém, foi justamente isto o que aconteceu em Sodoma e Gomorra, há milhares de séculos atrás. Portanto, como diria CS Lewis, “vamos simular” ou imaginar.

Primeiro exemplo: Num planeta “A”, certa vez um jovem iniciou-se na experimentação da toxicomania e tudo era alegria e curtição. A droga lhe recompensava bem (em termos de prazer) e todas as belezas lhe fluíam aos olhos sadios, sem qualquer sinal de que o amanhã lhe traria alguma surpresa desagradável. E a vida foi sendo levada assim e tudo corria bem, até que…

Um dia algo mudou em seu interior, e isto pôde ser chamado de milagre. O prazer secou e o desejo se foi, e estranhamente ele deixou a droga, num desses raros milagres testemunhados por alguns artistas de lá que já haviam provado de tudo. Porém o principal deste milagre foi justamente ter sobrevivido, não propriamente à droga, mas aos traficantes (ditadores), que jamais aceitam uma debandada da máfia ou a perda de uma fonte de renda!… Mas vamos contar outra história ficcional, mais forte, no quesito “expor a rejeição final do ditador”.

[Início da segunda história ou segundo exemplo]: Num planeta “B”, a Direção de uma emissora de TV aceitou o papel de erotizar o mundo, para o bem de seus próprios ninfomaníacos e de seus consumidores externos, ou seja, aqueles que pagam os olhos da cara para terem seus produtos propagandeados por ela (estes disseram que, se o mundo fosse erotizado, tanto os homens da TV teriam muito mais mulheres aos seus pés, quanto ajudariam a vender todos os seus produtos, pois os consumidores hipnotizados pelo sexo facilmente se renderiam à tentação de comprar mais, pois tudo conduzia para o erotismo). E melhor: se ela aceitasse aquele papel, todas as outras emissoras, também cheias de tarados, iriam entrar na onda e também fariam programações erotizantes, de tal modo que isso geraria uma pandemia mundial de depravação que a todos contagiaria e beneficiaria. E assim foi feito.

Passaram-se mais de 7 décadas de imoralidade crescente na TV, numa explosão de erotismo que acabou por destruir toda a moral e a ética; e as próximas décadas (antes do fim) foram de total omissão ou aquiescência daquela sociedade para com a depravação, a ponto de não acharem nada anormal as famílias transarem juntas e os pais permitirem suas filhas dormirem com três ou quatro homens, no mesmo quarto em que passaram a noite transando uns com os outros. Isto demorou quase dois séculos inteiros e ainda demorou bastante para arrefecer, em confronto com as gerações dos séculos seguintes.

Lá pelos idos do ano 2040 deles (esta data foi um palpite muito otimista!), a escalada da violência chegou a níveis tão gritantes e ameaçadores da sobrevivência planetária que uma estranha sensação começou a tomar conta do coração daquela Humanidade. Alguns espíritos menos tolos começaram a sentir ora pavores estranhos, ora um certo tédio, irrigados pela diminuição da recompensa prazerosa da depravação, o que fez germinar o pensamento de que o abuso da liberdade os estava cegando ou insensibilizando-os para outros prazeres (os quais, de tão elevados, talvez ainda nem tivessem sido apresentados às suas mentes).

Depois desse tempo, abandonados à própria sorte como muitos masturbadores em bacanais, descobriram-se sem querer acompanhados de outros igualmente entediados com aquilo tudo, e sua sensação não era uma coisa individual ou LOCALIZADA ali ao seu redor, sendo sentida (por milagre) também no meio das surubas dos ricos e dos produtores de TV.

Então chegou um “Dia D” e aquele povo decidiu dar um basta na depravação, e até as suas emissoras de TV foram, paulatinamente, mudando sua programação, estimuladas pelas novas políticas educacionais do planeta, que não apenas ministravam civismo, cultura e espiritualidade, mas reintroduziam a moral e a ética que levou toda a sociedade a diminuir o consumismo, o qual estimulava a onda erotizante das propagandas e das novelas.

Uma reunião de cúpula extraordinária foi realizada pelo “G-18” (o grupo dos 18 países mais poderosos daquele planeta) e os governantes decidiram PROIBIR a depravação, e nem mesmo a liberdade de imprensa se viu livre de censuras prévias.

Porém tal não pôde ser feito. I.e., quando o decreto proibitivo saiu, os líderes mundiais foram acossados por um extraterrestre maligno, que os proibiu de proibir a onda erotizante, sob pena de se verem em depressão profunda, suicídios, assassinatos em família e, enfim, devastação planetária.

Noutras palavras, todo o erotismo massificante, que conduziu as multidões até as mais sórdidas baixarias, e que muitos julgavam um ardil intencional por parte dos dirigentes aliados aos comerciantes internacionais, foi descoberto como originário de uma mente doentia não-humana e que não aceitaria retroceder na escalada depravatória, ameaçando de morte todo o planeta. Ou seja, ficou patente a impossibilidade de se dar um NÃO ao inimigo e à sua real intenção de afundar o mundo numa “Sodoma globalizada” (com crianças e incestos no meio), independente da vontade dos tarados e sodomitas daquele mundo. [Fim da segunda história].

A pergunta é: tem alguma possibilidade de esta história corresponder a algum fato real em nosso mundo? Melhor dizendo: há alguma lógica na hipótese de a depravação ser motivada por uma vontade não-humana e esmagadora, que rejeitaria a sua proibição? Alguém já pensou que por trás de toda a maldade humana existiria uma vontade sobre-humana ou infra-humana?… É isso que CS Lewis mostrou no livro “A última Batalha” de suas “Crônicas de Nárnia”, quando apresentou, ante os olhos pasmos de seus leitores, a figura horrenda e pútrida de Tacha, grande deus do Mal que estava por trás de todas as maldades em Nárnia. Será que Lewis imaginou um absurdo ou uma coisa impossível? Ora, não é nem nunca foi do feitio dele fazer isso. Pelo contrário. Sempre deixou os aparentes absurdos alicerçados na indestrutível bigorna da verdade.

Estamos, assim, autorizados a pensar o mesmo de nosso mundo. Tanto em relação ao que ele escreveu nas “Crônicas”, quanto em relação aos dois exemplos de histórias dados no início deste artigo. O ditador, seja ele um traficante ou um deus Tacha, jamais aceitará uma rejeição por parte dos viciados (em drogas ou em sexo). Logo, é difícil acreditar que a mídia venha a moralizar-se e a espiritualizar-se para uma legítima santificação cristã; porém, se vier a fazer isso, naquela hipótese de um milagre absurdo, ninguém deve esperar, sob pretexto algum, que a Humanidade consiga “espaço” para a santidade na Terra, enquanto seu governante-impostor não for expulso para aquele lugar preparado para o diabo e seus anjos!… E também, em relação a nós, resta vigiarmos bem a nossa vida cotidiana (que é visível para homens e deuses) e evitarmos os vícios, pois todo aquele que comete pecado é escravo do pecado.

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A fragilidade da alegação de embasamento bíblico

Por que toda argumentação contrária à liberdade de interpretação está sempre atrelada a uma interpretação particular de um credo ou denominação auto-eleita “apta” para oficializá-la?

Não é sem razão que muita gente que poderia hoje está dentro do aprisco do Cristianismo se encontra lá fora, sem nenhuma igreja, “sem religião” e às vezes até sem fé. Pelo contrário; são almas que podem ter visto todas as teses e antíteses relativas às doutrinas cristãs e ter concluído delas aquilo que os credos oficiais impuseram como “intocável”, ou verdade perfeita, como se o próprio Deus tivesse deixado a Sua Revelação sem a menor necessidade de estudo teológico. Eis aqui um problema ingente e intrincado, cuja solução talvez possa, a rigor, nem sequer existir. Pior, este parágrafo certamente não serve de introdução para muitos leitores aos quais o artigo é dirigido. Mas deixemos aqui ficar, pois pode servir numa releitura futura.

Pois bem. Temos pesquisado dezenas, senão centenas de autores, pastores e teólogos cristãos, notadamente os de influência reformada, nos quais percebemos a exaustiva repetição de um velho argumento contra a liberdade de interpretação, o qual cai por terra no exato instante em que entre eles mesmos alguém fala diferente, como se a palavra do grupo fosse sempre a “oficial”, ou como se o fato de alguma crença ser majoritária desse a ela qualquer garantia de exatidão para com aquilo que ela comunica. O argumento frágil e repetitivo é aquele que impõe a crença de que “determinado ponto doutrinário não tem base no texto bíblico”, o qual está diretamente associado (ou dela deriva ou a ela conduz) à noção compulsória de que “a Palavra de Deus não provém de interpretação particular”, como se isso significasse alguma coisa “teologicamente segura”, ou que não constituísse uma tremenda armadilha contra qualquer grupo, já que pressupõe a existência de uma só fonte confiável (cuja defesa imputa num sistema semelhante ao engendrado pela Santa Inquisição).

Portanto, se fosse assim, QUAL grupo mereceria confiança? Ou qual denominação seria ou estaria mais fiel à interpretação perfeita? (Se é que esta existe). Se apenas uma única interpretação é viável dentro das Escrituras, por que uma denominação que nasceu quase 1.500 anos após a Ressurreição estaria interpretando com perfeição a sã doutrina? Ou por que uma denominação que nasceu com um imperador romano, 300 anos após a Ressurreição, teria a hermenêutica divina? Ou mesmo por que a interpretação das próprias comunidades de seguidores dos apóstolos seria perfeita, quando a “imperfeição visual” se deve às deficiências inatas dos próprios sentidos humanos?…

São perguntas cuja resposta impõe uma parada no argumento, após a qual uma revisão de conceitos se faz absolutamente necessária, colocando homem a homem face a face diante de Deus, na constatação nua e crua da falibilidade humana, que não apenas atinge aos 5 sentidos e à habilidade de interpretar, mas à própria REDAÇÃO ORIGINAL das Escrituras, que também foi executada sob a égide das falhas típicas das condições terrestres.

Noutras palavras, o que se deveria pensar era que, após a Queda da Humanidade em Adão e Eva, a desgraça que tomou conta de tudo foi tão avassaladora que roubou do Homem a própria “condição” de alcançar a Verdade, e quando Deus tentasse esta nos passar, encontraria, Ele mesmo, todo este labirinto de problemas, até certo ponto insolúveis, enquanto dado transitável pelo ambiente tridimensional em que vive o seu público-alvo. I.e., que se o próprio Deus saísse pelo mundo, em carne e osso, a ‘evangelizar’ com “aquilo que sai da boca do Senhor”, Ele mesmo encontraria as dificuldades que qualquer pregador encontraria, a saber: os ouvidos que não ouvem direito, as mentes que não interpretam direito, a linguagem humana que não é capaz de comportar todos os meandros da Revelação, e, ao final, a própria mente dEle, cuja transformação (via Transposição) em mente finita acabou por obrigá-la a uma limitação irreparável, já que há partes da Revelação que só uma Visão Perfeita poderia enxergar. Shakespeare deixou um conceito preciso acerca deste problema que atingiria o próprio Deus, falando da “impossibilidade de transmissão da experiência individual”.

Isto posto, o que estamos dizendo aqui é que todos nós (a Humanidade inteira) deveríamos nos dar por satisfeitos com uma visão reduzida da Revelação, não apenas porque cada um de nós é limitado em corpo, mente e alma, e produzimos um Livro de Revelação igualmente limitado, mas porque o próprio Deus nos limitou e também SE limitou às deficiências de uma criação minúscula, conquanto assim o desejasse para completar uma longa lista de criaturas ao seu redor, alinhadas desde as categorias mais inferiores até as mais elevadas, qualitativamente falando. E mais, o momento onde Deus mais se limitou foi justamente quando assumiu o corpo humano, ou melhor, a natureza tridimensional, dignificando-a sim, mas limitando-se a ela, e só ensejando um crescimento maior numa formação posterior ou quando a jornada de cada um ascendesse às dimensões superiores de seus outros reinos, nos quais só então veríamos com perfeição (releia I Co 13,12). [Ademais, lamento informar que o que acabei de explicar não passa de um tosco resumo, tosco não apenas por advir de uma mente limitada como a minha, mas por estar sendo veiculada por linguagem humana – tão deficiente quanto – e direcionada a ouvidos igualmente limitados].

Neste espírito, se meu argumento ficou entendido e aceito, agora podemos analisar porque são tão incongruentes e inúteis as palavras daqueles que alegam falta de base bíblica para denegrir uma interpretação “diferente” daquela que sua mente está acostumada a ouvir (a de seu pastor ou igreja), já que a “Falibilidade Geral do Sistema Terrestre” introduz em TODA conversa as deficiências das conversas alheias, e assim a velha alegativa de “interpretação pessoal” se volta contra seus próprios alegadores, nivelando todas as almas no mesmo calabouço da desordem mental e da culpa diante de Deus, único que pode julgar aquilo que foge ou não do conjunto de Sua Verdade Absoluta.

Tudo isto está sendo dito porque tivemos a oportunidade de constatar aquela velha alegação endereçada a um cristão contra quem nada pode ser alegado, sobretudo no que diz respeito à capacidade de interpretar as Escrituras, uma vez que ninguém como ele foi tão “agraciado” por uma visão acurada e profunda em matéria de hermenêutica espiritual, como muito bem atestam todos os que com ele conviveram e leram. Refiro-me ao escritor e professor CS Lewis, cujas obras abrangem praticamente todos os aspectos da teologia, embora ele, pessoalmente, nunca tenha feito um curso de teologia, ordenado ou não, até onde fui informado. E vou me ater à crença dele no caráter resgatador da Missão de Cristo, no sentido da “paga” pela recuperação de direito sobre as almas humanas.

No livro “O Evangelho de Nárnia”, organizado pela brilhante mestra e escritora Gabriele Greggersen, um de seus autores (Carlos Caldas) expõe as teorias válidas a respeito da Expiação, e ao final reconhece que a visão de Lewis é a de que “Aslam pagou o preço do resgate de Edmundo” como uma reparação de um direito da feiticeira-branca às almas dos traidores, num paralelo com o direito do diabo sobre as almas humanas. E é isto mesmo que o livro/filme “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa” mostram, ou seja, que Cristo (atente que Aslam se chamou de Cristo no livro ‘Viagem do Peregrino da Alvorada’) pagou o nosso resgate por um direito adquirido de Lúcifer sobre as almas perdidas, com base na Lei antiga do universo, a qual dava ao diabo o direito de governar sobre Tellus e sobre tudo o que Tellus produzisse. [Lúcifer adquiriu tal direito ANTES de se tornar o diabo, quando o Criador distribuía seus bens e propriedades aos seus auxiliares (arcanjos e anjos-construtores), os quais recebiam, pelo seu bom caráter, imensas regiões do Reino para governar, cuidar e aperfeiçoar. Naquela ocasião, Lúcifer teria recebido a Terra e tudo o que ela produz].

Com efeito, pode-se notar que Deus não deve nada ao demônio (como não devia em Nárnia), e sim, à Lei Antiga, que Ele mesmo legislou, antes que os anjos maus se rebelassem. Assim sendo, como o direito sobre a produção dos planetas já estava posto muito antes da rebelião, as almas que nascessem nos planetas seriam propriedade dos seus anjos-governantes, tal como as almas dos malacandrianos são propriedade de Oyarsa no livro “Longe do Planeta Silencioso”. Logo, se Deus quisesse resgatá-las, teria que satisfazer à velha Lei, e esta reza que o sangue dos pecadores só poderia ser pago por sangue puro. Eis aí a razão precípua da crucificação e da expiação.

Pois bem. O problema é que o sr. Carlos Caldas, conquanto seja um escritor bastante preparado e culto, envereda-se pela velha alegação de que “não há base bíblica para se admitir o direito de Lúcifer sobre as almas”, como se CS Lewis tivesse uma deficiência visual perceptível, ou como se qualquer um de nós tivesse capacidade para enxergar ALÉM de Lewis! Este é o ponto. Todavia, digamos que a visão de Jack seja tão deficiente quanto a nossa ou quanto a do citado autor (inferior eu não acredito que ele ouse alegar) e que teríamos autoridade para duvidar de Lewis. Ok. Porém vamos verificar se não existe mesmo base bíblica para se afirmar a crença de Jack no caráter resgatatório da Crucificação. Vejamos.

Num estranhíssimo trecho do Novo Testamento, são Judas diz que certa ocasião o arcanjo Miguel lutou contra o diabo pela posse do corpo de Moisés (Judas 9). Por que cargas d’água um anjo de Deus teria que lutar (contender) contra Lúcifer pelo corpo de um ser humano, se este homem não tivesse estado, até o fim de sua vida física, atrelado ao cárcere terrestre de satanás da Lei antiga? Não é muito mais lógico supor que o diabo, eivado do seu orgulho bestial, não estava tentando MANTER o direito sobre o corpo de Moisés, já que durante tanto tempo o teve como prisioneiro? Ora: demônios desobedecerem leis é fácil de explicar; mas anjos não. A lei que antes da morte dava direito a Lúcifer, encerra-se com a morte e portanto somente numa guerra o diabo poderia tentar reavê-lo. Mas o anjo que foi defender o corpo de Moisés estava CUMPRINDO a Lei, ou seja, resgatando para Deus os restos mortais de um grande servo do Senhor, por cuja morte tinha todo direito de não mais estar preso a Lúcifer. Certo? Não fica bem claro assim?…

No episódio da Tentação de Jesus, nosso Senhor jamais negou as palavras de Lúcifer quando este alegou possuir TODOS os Reinos do mundo e tudo o que o mundo PRODUZ. Observe o leitor mais atento o seguinte: “como a Missão de Cristo poderia ter todo o valor inefável que possui, se a Crucificação tivesse ido buscar almas ‘neutras’ (ou ‘sem dono’), ou se seu dono fosse o Pai celeste? (que é Ele mesmo)” – Atente então para o fato de que toda a obra da Salvação ganha um valor incalculável JUSTAMENTE por exigir de Deus o pagamento por aquilo que não mais lhe pertencia, obrigando a uma tarefa extremamente dolorosa e arriscada, a saber: reduzir todo o seu poder, descer até um planeta imundo como o nosso, nascer em condição de extrema pobreza, viver uma vida de sacrifício e perseguição, ser rejeitado pelo seu próprio povo, ser traído por um de seus próprios apóstolos, passar por uma via dolorosa, ser esbofeteado, cuspido, humilhado e finalmente crucificado! Não é? Então, será que a obra de Deus teria tanto valor se tudo isso fosse feito em busca de coisas ou pessoas que já lhe pertenciam? Ou seja, se a Lei cósmica já lhe desse direito sobre elas?

Eis a chave da questão. A Suprema Reivindicação, o Magnânimo Milagre e a Infinita Graça se compõem de tudo aquilo que a decisão de Deus teve que enfrentar para recuperar as almas que Ele havia perdido em Adão e Eva; e se assim não fosse os demônios teriam, para sempre, motivo para propalar que a obra salvífica foi chocha, covarde e ordinária, pois Deus teria apenas buscado o que já lhe pertencia!… Eis porque devemos, com apoio das linhas ou das entrelinhas da Palavra de Deus, ou até “sem apoio”, defender que Deus salvou almas que pertenciam a satanás, e por isso “como escaparemos se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hebreus 2,3).

Assim, refeitos por essa extraordinária boa nova, o que pontuávamos não era uma suposta falta de lógica na crença de Jack, mas a alegativa de Carlos Caldas de que esta crença não tem base bíblica. E ela é, com certeza, a mesma “decoreba” alegada por todos os cristãos reformados e até alguns católicos, que julgam existir na Terra um lugar onde uma interpretação PERFEITA existe.

Finalmente, se não existe interpretação perfeita (se houvesse, ela teria morrido na noite dos tempos com os primeiros apóstolos; e se não morreu, estaria na Igreja Católica), se em pelo menos dois trechos do Novo Testamento os direitos de satanás ficaram implícitos (outros há com certeza, como mostrou Russell Champlin em seu O Novo Testamento Interpretado Versiculo por Versiculo), se a mente de Jack é saudável e lúcida o suficiente para nos basearmos nela, e se a obra de Deus ganha toda a Glória de um sacrifício perfeito por aquilo que não mais lhe pertencia, então façamos coro uníssono com a fé de CS Lewis, certamente a última deste mundo a contemplar todas as preciosidades de tão gloriosa Revelação.

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