Sendo a pregação do Evangelho a heroica tarefa de anunciar a salvação e o Reino de Deus a todos os povos, uma obra prima do cinema pode muito bem “substituir” o Evangelho escrito, para a ira dos fundamentalistas.
Uma verdade hoje em dia já salta aos olhos do crente mais preparado no discipulado cristão, a saber: que se na época de Jesus houvesse toda a nossa atual tecnologia de audiovisuais, se as ruas da antiga Jerusalém tivessem, como hoje, mil câmaras filmadoras nos postes, e se os próprios apóstolos andassem com câmaras filmando tudo, o filme que eles produziriam seria MUITO MELHOR e muito mais preciso do que os Evangelhos canônicos, que só foram manuscritos, e apenas manuscritos, feitos “in memoriam”, décadas depois dos fatos necessários à comunicação do plano de Deus.
Mas não é todo crente que pensa e crê assim. Em nosso tempo, como no de Jesus, há milhares senão milhões de cristãos aferrados à tosca ideia de que SOMENTE o texto escrito tem valor canônico, e pior, que este valor até deve fazer “vista grossa” para os ‘plausíveis’ erros de tradução, bem como para a interpretação proselitista dos editores bíblicos de cada denominação, e até para as falhas de memória dos próprios autores do texto sagrado, esquecendo que os originais da Bíblia foram perdidos e que as Escrituras que temos hoje são cópias, de cópias, de cópias das segundas cópias!
Tudo isto nos traz de volta ao “filme original” feito pelos apóstolos, 100% fiel aos fatos, em nossa “fantasia consoladora” dos cristãos bem preparados teologicamente. Porquanto o filme mostra até O ROSTO de Jesus, do verdadeiro ‘Yeshua’ (i.e., o Nazareno aos 30 anos!), sendo batizado por João Batista nas águas do Jordão, e mostra também quando o “Pombinho Branco” pousou sobre os ombros de Jesus e depois sobre os ombros de João, com “a Voz” a dizer: “Este é meu Filho Amado a quem deveis ouvir”. A partir daquele dia, tudo o mais foi filmado, e a vida do Nazareno agora não tem mais segredos, embora o filme não mostre o que Jesus esteve fazendo dos 12 aos 30 anos! (Afinal, o que importa, não é? Se nós “temos” tudo o mais em filme?)…
Pois bem. Se o leitor está entendendo a nossa “fantasia”, vou estarrecer muito mais os ouvidos fundamentalistas quando disser que no Século XX, houve um homem que trouxe para o mundo um pequeno trecho “do filme original da vida de Jesus”, e aquele trecho substitui perfeitamente o trecho do Evangelho ao qual se refere, ou no mínimo suplanta todas as pregações modernas acerca daquela passagem terrível da vida do Nazareno.
O homem que realizou tal prodígio se chama Mel Gibson e, antes que falem mal dele, temos que ser educados biblicamente e dizer que até um hipócrita merece “ser seguido em seus conselhos”, como Jesus explicou em Mateus 23:2-3; e que até as pedras clamarão e até os burros podem pregar a Verdade de Deus, como o filme original da fantasia mostrou acontecer com a jumenta de Balaão, numa de suas (re)tomadas ao passado.
Mel Gibson chamou o filme humilde e prosaicamente de “Paixão de Cristo”, quase eclipsando-o por dar-lhe nome igual ao de tantos outros filmes sobre a Paixão, porém justamente aí suplantando-os todos, pois nunca ninguém jamais exibiu (expôs, desnudou) as últimas horas da vida de Jesus com tanta crueza, dureza, frieza e emoção, ao mesmo tempo, iluminando com máximo realismo a natureza bruta do ódio humano herdado do inferno (Hades) para onde Jesus se dirigiria após a crucificação!
E fez tudo isso de tal modo que conseguiu uma unanimidade mundial: NINGUÉM assistiu àquele filme sem (con)doer-se e sem coparticipar intimamente de todo o sofrimento da via crucis, promovendo, a partir daí, um trampolim para o primeiro degrau de uma conversão genuína aos pés do Senhor. Quem, afinal, poderia assistir tanto sofrimento, tantas chicotadas, tantas bofetadas, tantas blasfêmias, tantas cusparadas, enfim, tantas torturas infligidas a um inocente, sem que seu coração não desse sinais de piedade ou revolta? E pior: a magia perfeita daquele filme era justamente conduzir os corações à introjetar as dores da via sacra, de tal maneira que sua empatia gritaria forte em cada ouvido presente àquelas cenas sangrentas: “Eu fiz tudo isso por você!”, ou, um pouco mais leve, “Ele fez tudo aquilo por nós!”… – Eis aí o portentoso milagre operado por Mel Gibson, se é que o leitor quer continuar a crer que tudo veio da cabeça de Gibson, como se Deus nunca pudesse usar um artista de Hollywood ou um diretor de cinema para levar aquela Palavra que nunca volta vazia.
Isto posto, voltemos ao que tratamos no início. Ora, quem quer que tenha lido 4 vezes os 4 Evangelhos, e ao mesmo tempo tenha assistido 4 vezes a “Paixão de Cristo” (cada 4 desses seria o ideal em cada caso), deverá agora estar boquiaberto, inquieto, espantado, muito mais que admirado, verdadeiramente pasmo, com a luz que aquele filme fez incidir sobre as cenas descritas à mão pelos autores canônicos, e também com o tremendo esclarecimento ensejado à sua fé em Cristo, na intimidade das relações que suas emoções trocam com sua Razão, quando até a voz de Deus ficou mais clara e lhe disse: “Foi assim mesmo que meu Filho sofreu, foi assim mesmo que Ele passou pela via sacra e é assim mesmo que vós deveis entender que Ele entregou tudo por amor de vós, e tudo isso sem exibir sua dor para salvar seus próprios inimigos após seu último suspiro na cruz!”.
“Todas as cenas retratam os fatos descritos de memória pelos homens que escolhi para deixar um registro histórico da passagem de meu Filho pela Terra, e ainda o fazem com muito mais destreza que eles, pois você sabe que uma imagem vale mais que mil palavras. Mil imagens em movimento (é isto que é o Cinema) valem ainda muito mais, e é por isso que lamento não haver, à época de meu Filho, câmeras que tivessem filmado aquilo tudo. A partir de agora, você já sabe que a minha Palavra não está amordaçada (II Tm 2,9b) e que ‘havendo Deus outrora falado muitas vezes e de muitas maneiras aos pais pelos profetas’, falou agora mesmo de muitas maneiras aos filhos por meus filhos de Hollywood, minhas pedras falantes”.
“Porém creio que ainda há mais um detalhe daquele filme que merece uma reflexão. Você já se perguntou: ‘Por que Maria não chora no filme de Mel Gibson? E será mesmo verdade que ela nunca chorou na via sacra?’… Sim, é verdade. Ela não chorou mesmo. Pelo contrário: muitas cenas filmadas chegaram a mostrar alguma coisa como o esboço de um leve sorriso inconfesso, e a magistral cena (note: uma cena não descrita pelos evangelistas canônicos) em que Maria, ‘quase deitada’ no chão ensanguentado do pátio onde seu Filho foi chicoteado, estava ali como que a ‘banhar-se’ no precioso sangue, lavando-se onde todos nós deveríamos nos lavar… Enfim, aquela cena valeu todo o filme e todos os evangelhos oficiais!”.
Mas por que Maria nunca chorou no filme? Aliás, por que Maria não chorava ao longo de sua trajetória como Mãe do Salvador? Ora, aquela mulher podia possuir pecados como qualquer outra maria-dos-josés, e nem ela mesma escondeu isso quando falou que Deus era o seu salvador (Lc 1,47). Mas o que ela não tinha de jeito nenhum era qualquer mínima inconsciência de sua Missão, e foi a sua precisa e minuciosa consciência missionária que lhe habilitou, em primeiro lugar, para ser a grande primeira evangelista e a futura Rainha do Céu. Ela era, afinal, alguém que possui “alma de cachorro” (como explicou CS Lewis) no melhor dos sentidos caninos, a saber, uma personalidade insone, atenta a tudo, humilde ao extremo com as coisas humildes e profundamente responsável, levando tudo a sério em sua vida “infeliz”. Enfim, a resposta também ficou clara nesta belíssima canção: veja AQUI.
Logo, e plenamente consciente de tudo muito mais do que ela, Jesus “sacou” logo quem era a sua mãe, e jamais se deixou abater por alguma hesitação ou desânimo da parte dela, pois Ele mesmo apostava todas as suas fichas na fortaleza de Maria, que hoje também está merecidamente chamada de “guerreira”. Muito mais forte que José (em termos anímicos, óbvio), ela acompanhou par e passo todos os passos de seu Filho, mesmo quando não estava presente em algumas de suas “tresloucadas” missões, como aquela de dormir “boiando” no meio do mar e bem debaixo de uma tempestade!
Finalmente, o filme de Mel Gibson expõe essa Maria Guerreira, esta mulher fortíssima que a pós-modernidade talvez quisesse blasfemar de salto alto ou de “sapatão”, mas que tinha uma feminilidade tão profunda que atraiu até anjos (Ap. 12,13) que outrora caíram com outras mulheres super femininas. A filmagem de Gibson (que parece ter voltado no tempo e filmado in loco) explicita cenas de Maria que os evangelhos jamais teriam valorizado, ou cuja memória recuperada depois de décadas poderia perfeitamente esquecer! Seu rosto não era belíssimo mas sereníssimo, com a sobriedade de saber que aquilo tudo que ela via na via sacra era a Missão de seu Filho e Salvador, e que todo o seu sofrimento deveria ser encarado como mínimo diante da glória que haveria de vir a ser revelada nela e nEle, como Paulo explicou aos romanos (Rm 8,18). Lágrimas? Lágrimas em Maria? Não brinca. Para quê e por que um filho de Jesus iria chorar? Certamente foi olhando para os olhos dela que Paulo escreveu aos Filipenses: “alegrai-vos, outra vez digo, alegrai-vos”…
2 respostas a Quando um filme pode substituir o texto canônico